Com um rito dramático, grave, solene, austero, simples e nobre de espalhar cinzas sobre as nossas cabeças, a igreja nos abre as portas da Quaresma; é a celebração da Quarta-feira de cinzas, in capite jejunii.

O que é a Quaresma? É a liturgia da Quarta-feira de cinzas que nos responde. A Coleta da missa da Quarta-feira de cinzas e a oração para a benção das cinzas, dizem que a Quaresma é um itinerário, um caminho  espiritual para «chegarmos completamente renovados para à celebração da Páscoa de Cristo Senhor». É um verdadeiro caminho em direção à Páscoa, coração, fonte e cume da nossa fé cristã. Assim recorda o Papa São Leão Magno: «Caríssimos, entre todos os dias que a devoção cristã celebra com honra, e de muitas maneiras, nenhum é mais importante do que a festa da Páscoa, da qual todas as outras festividades da Igreja de Deus recebem sua sagrada solenidade. […] Se considerarmos pois, que por meio da cruz, o mundo inteiro foi redimido – conclui o santo – entendemos que é justo que nos preparemos para a Páscoa com um jejum de quarenta dias, para participar dignamente aos divinos mistérios».

Então, se a meta é o mais importante, se o objetivo a atingir é o que importa, devemos nos apressar sem prestar atenção ao caminho? Certamente não. O caminho é feito sem perder de vista o ponto de chegada, mas a beleza da chegada é o resumo de tudo o que se colhe ao longo do caminho, porque esse caminho é uma estrada de volta àquele de quem nos distanciamos por causa dos  nossos pecado. Os Padres da Igreja, os capadócios, afirmam que a conversão não é senão o nosso «grande retorno», nosso tornar à casa, àquele paraíso de onde saíram os nossos pais, Adão e Eva. São as palavras do sacerdote que acompanham o rito da imposição das cinzas – Memento, homo, quia pulvis es, et in pulvis reverteris … (Lembra-te, ó homem, que és pó, e ao pó retornarás…) nos encaminham àquela realidade de princípio. Nos falam de uma saudade de casa da qual devemos sempre nos recordar.

De fato, ao menos duas vezes na liturgia da Quarta-feira de cinzas ouvimos esse apelo de retorno ao Senhor pela boca do profeta Joel: «Diz o Senhor, voltai para mim com todo o vosso coração, com jejuns, lágrimas e gemidos; rasgai o coração, e não as vestes, ‒ então a liturgia nos faz entender quem nos espera, quem está no limiar do Édem a nos esperar. Prossegue o profeta ‒ voltai para o Senhor, vosso Deus; ele é benigno e compassivo, paciente e cheio de misericórdia, inclinado a perdoar o castigo» (Joel 2,12-13). A Antífona de Entrada também fala sobre Ele: «Vós amais todas as criaturas, Senhor, e não desprezais nada do que criastes; vós esqueceis os pecados daqueles que se convertem e os perdoais, porque vós sois o Senhor nosso Deus» (Sab 11.24-25.27). O salmista fala de um Deus de amor, de grande misericórdia, que anula a iniquidade, que lava da culpa, que torna puro do pecado, que cria um coração puro e restaura a alegria da Salvação (ver Salmo 50).

Sim, a conversão, o caminho de retorno, o percurso quaresmal, é um modo de vida, como evidenciam os Padres da Igreja: «É de fundamental importância saber para quem se vive e para quem se morre, porque existe um estilo de vida que conduz à morte e a um estilo de morte que restitui a vida».

Ninguém é excluído das práticas de conversão da Quaresma; todos são chamados a retornar ao Senhor. Outra vez nos recorda o profeta «Tocai trombeta em Sião, prescrevei o jejum sagrado, convocai a assembleia; congregai o povo, realizai cerimônias de culto, reuni anciãos, ajuntai crianças e lactentes; deixe o esposo seu aposento, e a esposa seu leito» (Joel 2,15-16). Mais uma vez ressoa a voz de São Leão Magno: «E não só os grandes bispos, os simples sacerdotes e os diáconos, mas todo o corpo da Igreja, todos os fiéis, devem ser purificados de toda mancha do pecado, de modo que o templo de Deus, cujo fundador é o fundamento são uma coisa só, seja magnífico  esplendente em todas as suas partes».

O texto evangélico (Mt 6,1-6,16-18) ilustra o significado das práticas tradicionais de Quaresma: esmola, oração e jejum, com um chamado constante a superar o formalismo. Jesus não elimina essas práticas da piedade judaica, que ele mesmo viveu ao máximo; Ele só quer que nós as vivamos sinceramente, sem hipocrisia. Somos chamados a viver uma luta contínua contra a hipocrisia, de modo a não distorcer nosso relacionamento com o Pai, que deve ser vivido na intimidade do coração. Precisamente porque são essas práticas que nos ajudam a superar o pecado, de acordo com a oração sobre as oferendas: «conceda que, por meio das obras de caridade e penitência, superemos nossos vícios e livres do pecado possamos celebrar a Páscoa de vosso Filho», e o prefácio IV da Quaresma: «pela penitência da Quaresma, corrigis nossos vícios, elevais nossos sentimentos, fortificais nosso espírito fraterno e nos garantis uma eterna recompensa, por Cristo, Senhor nosso».

A Quaresma, portanto, é um momento favorável para o amadurecimento da fé de forma individual e coletiva. Sem esta perspectiva de fé, a Quaresma corre o risco de se tornar um tempo cujo centro é o esforço moral, e as práticas ascéticas tornam-se um fim em si mesmas e afetam negativamente o aprofundamento de uma experiência autêntica da vida cristã. Por isso, devemos acrescentar que este tempo é, acima de tudo, um tempo de escuta mais intensa da Palavra de Deus, tanto na lectio divina quanto na lectio liturgica, como lembra versículo de aclamação ao Evangelho: «Não endureçais, irmãos o vosso coração, ouvi hoje a voz de Deus»  (Sl 94,8) e uma das antífonas para a comunhão: «Quem medita dia e noite na lei do Senhor, dará o seu fruto no tempo oportuno» (Sl 1,2-3). Vivendo a Quaresma deste modo, diz São Bento, «Com alegria de desejo sobrenatural, aguardaremos a Santa Páscoa» (RB 49, 8).

Dom Jerônimo Pereira Silva, OSB.

Doutor em Sagrada Liturgia.
Membro do Centro de Liturgia Dom Clemente Isnard.
Mosteiro de São Bento de Olinda, PE; Istituto di Liturgia Pastorale, Pádua, Itália.