Passados 50 anos do Concílio já não é mais nenhuma novidade a compreensão da liturgia como lugar da manifestação da Igreja na sua natureza sacramental, nem tampouco de quanto essa categoria seja estreitamente ligada àquela do mistério, na linguagem dos Padres da Igreja, adotada como modelo pelos Padres conciliares e por toda a doutrina teológica do último cinquentenário.

É, por outro lado, obrigação nossa, por justiça metodológica, sublinhar que quem seriamente se empenhou ou se empenha em aprender o mínimo de teologia é capaz de distinguir ações mistéricas de ações misteriosas. Em poucas palavras, o mistério se revela escondendo-se nos sinais, o misterioso se esconde no espetáculo que deixa o espectador até o fim numa situação inegociável de espectador. Isto é, o mistério é aberto, acolhedor, envolvente, participativo, não admite ausência e apatia, inércia; o seu objetivo é revelar-se; o misterioso é excludente, sectário; tudo se faz diante de um público que assiste maravilhado o numinoso inacessível.

Partindo dessa premissa não se pode duvidar que a compreensão do mistério litúrgico resida na afirmação persistente da constante presença de Cristo na celebração dos sacramentos. Assim, o mistério eclesial segue o mesmo modelo, isto é, a Igreja é mistério porque também essa é lugar da constante presença e ação de Deus por Jesus Cristo seu Filho no Espírito Santo[2].

É exatamente no número 7 da Sacrosanctum Concilium (SC) onde particularmente se expressa a dimensão mistérica da Igreja. Seria pecar por liturgismo afirmar que a presença de Cristo na Igreja se limita ao âmbito cultual, mas é absolutamente evidente que é na celebração litúrgica que tal presença ativa e operante se atualiza de modo excelente. De fato o artigo 7 começa exatamente sublinhando essa verdade: “Para realizar tão grande obra, Cristo está sempre presente na sua igreja, especialmente nas ações litúrgicas”[3].

Para o prof. Roberto Repole

O que mais chama a atenção neste texto, a respeito de uma eclesiologia manualística de tipo societário, apologético e fortemente jurídico no qual o nexo entre Cristo e a Igreja era substancialmente extrínseco e se limitava a colocar em evidência o ato de fundação por parte do Jesus histórico, é a perspectiva de uma presença e de uma atividade contínua de Cristo relacionadas à comunidade cristã. Presença e atividade que se intensificam e têm o seu cume nas ações litúrgicas[4].

Passados mais de cinquenta anos do evento que foi o Concílio, a teologia que dele brotou desperta sempre mais e mais, em âmbito ocidental, a consciência de que tal presença e ação se tornam possíveis somente graças à força operante do Espírito Santo, embora essa dimensão epiclética seja praticamente ausente na Constituição SC[5], mesmo se não se tem nenhuma dúvida que a promulgação da SC foi uma “marca inequivocável daquela prioridade do Espírito Santo na Igreja (e no Concílio) que virá mais explicitamente desenvolvida nos documentos sucessivos, os quais permanecerão fundamentalmente na perspectiva aberta por SC”[6]. Tal carência vem, porém, suprimida pela reforma litúrgica quando acentua a dimensão epiclética em todos os sacramentos.

 

Dom Jerônimo Pereira Silva (osb).
Doutor em Sagrada Liturgia.


[1] Parte do artigo foi publicado na Revista de Liturgia, São Paulo, n. 243, p. 21-24, mai./jun. 2014.
[2] Cf. De Lubac, Henri. Paradosso e mistero della chiesa. Milano: Jaca Book, 1997. p. 13-31.
[3] Um estudo do processo redacional deste número desperta a atenção para a imediata referência à forma de presença eucarística. Certamente se trata do texto emendado, mas consegue exprimir como a eucaristia se torna o ponto de atração de todos os sacramentos, mesmo se as intervenções de muitos Padres conciliares eram ainda de tipo apologético, típico da linguagem contrarreformista, conforme se lê em Hellín, F. Gil (ed.). Concilii Vaticani II synopsis. Constitutio de Sacra Liturgia Sacrosanctum Concilium. Città del Vaticano: LEV 2003. p. 30-31. Visão amadurecida é a de Francisco Taborda ao afirmar que “a celebração eucarística assume e densifica num momento festivo a vida da Igreja, sendo, por isso, de forma privilegiada, o que a Igreja é no seu dia-a-dia: presença de Cristo, sacrifício de Cristo, comunhão com Cristo. A eucaristia faz a Igreja, aprofundando a nível de celebração e, portanto, de afeto, de alegria, de festa, aquilo que a Igreja é e faz, deve ser e deve fazer e assim provocando-a a ser Igreja. O indicativo da celebração eucarística apresenta à Igreja o imperativo de ser aquilo que ela celebra na expressão significativa da refeição do pão e do vinho. A eucaristia causa a Igreja, como diz o axioma de teologia sacramentai: “sacramenta significando causant” (os sacramentos causam significando)”. Taborda, Francisco. Eucaristia e Igreja. Perspectiva Teológica, v. 17, n. 41, p. 29, jan./abr., 1985.
[4] Repole, R. «Reforma della liturgia e immagine di chiesa, tra Sacrosanctum Concilium e Lumen Gentium». In: Aa.Vv. Il Concilio Vaticano II e la liturgia: memoria e futuro XL Settimana di Studio dell’Associazione Professori di Liturgia 2012. Roma: CLV, 2013. p. 64. Cf. também Oñatibia, Ignacio. La eclesiología de la ‘Sacrosanctum Concilium’. In: Congregazione per il culto divino. Costituzione liturgica «Sacrosanctum Concilium». Studi (Bibliothe­ca «Ephemerides Liturgicæ». Collectio Subsidia 38). Roma: CLV ‒ Edizioni Liturgiche, 1986. p. 174.
[5] O Espírito Santo vem citado apenas 5 vezes em toda a Constituição, nos números 2, 5, 6 (duas vezes) e 43. Significativo, porém é a afirmação contida no número 6 de que a vida sacramental, e especialmente a celebração do mistério pascal, se realiza “pela virtude do Espírito Santo”.
[6] Cislaghi, Gabriele. Per una ecclesiologia pneumatológica: Il Concilio Vaticano II e una proposta sistematica. Milano: Glossa, 2004. p. 96.