A fé cristã se fundamenta na revelação. Ela surge a partir de uma epifania, isto é, nasce da manifestação de um que é completamente outro, de um que ordinariamente não poderia ser alcançado, visto, tocado, escutado, mas somente temido, venerado. Aqui se apresenta o grande mistério que transpassa todo o percurso histórico da fé cristã, longamente preparado pelo antigo Israel, realizado plenamente em Jesus Cristo e prolongado na Igreja: Não é a criatura que chega até Deus, mas é Deus que em primeiro lugar alcança o ser humano, caminha na sua direção, a ele se revela, dele assume não somente a carne, mas o próprio ser.[1]

Convém salientar antes de tudo que o esforço intelectual e moral, embora importante para a vida cristã, não é suficiente para se chegar até Deus. A fé sim, e esta se apresenta como um dom gratuito de Deus. A fé, porém, não é transmitida e recebida por meio da doutrina (intelectualismo) ou pelas aplicações de leis morais (moral) que têm como objetivo levar a humanidade a tornar-se melhor, mas por meio de algo que mais se pareça com a história da salvação, porque é exatamente ali, na história da salvação, que se dá a revelação de Deus encarnado em Jesus Cristo, o qual distribui gratuitamente o dom da fé. Aqui entra a liturgia que se configura como um constante fazer memória desta história de salvação.

 

A celebração litúrgica como transfiguração do mistério

A comunidade cristã, se quiser entrar na dinâmica da história da salvação, deve manter um tipo de prática ritual que constantemente a faça recordar que a primazia pertence sempre a Deus; porque exatamente a sua capacidade de acesso Àquele que antes da revelação era inacessível, e agora se tornou tangível, nasce somente graças à fé que é um dom gratuito que vem do alto e foi dado a todos, ignorantes (intelectualmente) e incoerentes (moralmente fracos). A Igreja precisa de celebrar sempre para ter sempre presente essa consciência de que a fé não é uma conquista humana.

O evento da Encarnação, da vida, da cruz, da Páscoa, da Ascenção de Cristo, do qual toda celebração litúrgica é um constante fazer memória,[2] é crucial para ajudar o crente a mudar a imagem de Deus adquirida por meio de um sistema de crenças baseado num complexo de doutrinas puramente moral ou jurídico/legal, e entrar na dinâmica de um Deus que se transfigura quando se desfigura. Tal modelo encontramos nos chamados hinos cristológicos paulinos, como por exemplo no famoso hino da carta ao Filipenses (2,6-11):

Desfiguração
Jesus Cristo, existindo em condição divina, não fez do ser igual a Deus uma usurpação, mas ele esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens. Encontrado com aspecto humano, humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até à morte, e morte de cruz.

Transfiguração
Por isso, Deus o exaltou acima de tudo e lhe deu o Nome que está acima de todo nome. Assim, ao nome de Jesus, todo joelho se dobre, no céu, na terra e abaixo da terra, e toda língua proclame: “Jesus Cristo é o Senhor”, para a glória de Deus Pai.

Na liturgia, o mistério se desfigura quando se esconde nos sinais sensíveis e nos gestos que se tornam ao mesmo tempo transfiguração, ou epifania do mesmo mistério.  “É a exterioridade que abre a interioridade, o rito o evento e a forma ao conteúdo”.[3] De fato, a liturgia não tem como objetivo primeiro apresentar-nos uma teologia sobre Deus (teoria, conhecimento intelectual), mas de nos fazer experimentar uma imagem de Deus no sentido bíblico, ou seja, levar-nos a um encontro com Deus.

A fé cristã vivida potencialmente na celebração litúrgica não é uma crença abstrata em Jesus, mas um encontro com Jesus, um ser enxertado nele. A fé é um processo de iniciação, cujo modelo fundamental encontramos nos ritos de iniciação cristã.[4] No Batismo eu entro todo inteiro em Cristo, eu mergulho em Cristo, sou semeado em Cristo; na Eucaristia, Cristo entra todo inteiro em mim, ele é semeado, enxertado em mim para que eu me tornar no mundo o bom odor de Cristo (crisma).

 

Dom Jerônimo Pereira Silva (osb).
Doutor em Sagrada Liturgia.


[1] Jesus “trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-Se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado”. Constituição Gaudium et spes sobre a Igreja no mundo de hoje. n. 22. In: AAS 58 (1966) 22, p. 1042-1043; Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2002.
[2] “Celebrando, agora, ó Pai, a memória da nossa redenção, anunciamos a morte de Cristo e sua descida entre os mortos, proclamamos a sua ressurreição e ascensão à vossa direita e, esperando a sua vindo gloriosa…”. Missal Romano. Oração Eucarística IV.
[3] Della Pietra, Loris. Rituum forma: la teologia dei sacramenti alla prova della forma rituale. Padova: Messaggero, 2012. p. 50.
[4] Cf. Silva, Jerônimo Pereira. O RICA, um caminho de iniciação antes e depois do batismo. Revista de Liturgia, São Paulo, n. 249, p. 12-17, mai./jun. 2015.