IN VISIBILIA INVISIBILIA – No visível o invisível 

Com a arte de Claudio Pastro, de saudosa memória, Dom Ruberval Monteiro (osb), Ir. Laíde Sonda (pddm), Márcio Motta, Dom Marcelo Molinero, (osb) e tantos outros artistas sacros, a Igreja no Brasil está redescobrindo, não sem uma certa dificuldade, o valor litúrgico-teológico, além do estético, da arte bimilenar da iconografia cristã.

O ícone (do grego eikon: imagem) expressa a religiosidade dos povos cristãos ortodoxos que assumiram a técnica iconográfica de Bizâncio, porém, pertence à catolicidade da Igreja e reflete em si a experiência litúrgica e de oração dessa catolicidade e apostolicidade. Criado nos tempos nos quais «a veste de Cristo» ainda era intacta e não transformada em frangalhos pelas nossas discórdias e desavenças políticas e teológicas, o ícone, imagem do amor fraterno e da unidade da Igreja de Cristo, não é uma simples imagem, mas um lugar da Presença Divina, uma revelação do Divino. Os esforços de muitas gerações de iconógrafos resultaram na criação de uma linguagem e de um estilo capaz de desvelar, da forma mais precisa possível, a experiência da Jerusalém celeste. «O ícone desenha o Absoluto com as cores do relativo» (Paola Cortesi). O ícone é um livro de fé. Por isso os Padres da Igreja estabeleceram que os ícones fossem tratados com a mesma veneração e reverência com que se tratam a cruz e o Evangelho.

O escopo principal da iconografia cristã não é tanto aquele de apresentar uma obra «bela», mas de anunciar, manifestar, expressar a realidade espiritual dos mistérios da fé. A palavra «iconógrafo ou isógrafo» vem do grego: eikon (imagem) + graphos (escrever), por isso não se diz que o ícone foi pintado, mas que ele foi escrito. Assim se entende que, a imagem sagrada, existente desde os primórdios da Igreja, é uma forma que a liturgia encontrou, entre outras, para escrever a fé e os mistérios celebrados.

Uma obra de teologia que expressa o invisível: aquilo que os Evangelhos e os outros textos dizem com a palavra, o iconógrafo o anuncia com as cores observando escrupulosamente algumas regras fixadas sobretudo na composição e nos tons cromáticos. Para compreender o ícone é necessário conhecer e compreender a liturgia. «Quanto mais adentramos no mundo do ícone, tanto mais distintamente compreendemos que os iconógrafos do passado olhavam o ícone com olhos diferentes dos nossos e se relacionavam com o ícone num modo distinto daquele do homem de hoje. O componente estético não predominava sobre o ético, mas junto a este último formava uma coisa só. A beleza na concepção cristã é uma categoria ontológica, estreitamente ligada à categoria do ser. O conceito de beleza contém em si o conceito de harmonia, de perfeição, de pureza e de bondade» (Aleksandr Stal’nov).

As regras e os modelos que formam os cânones indispensáveis à «escritura» de um ícone, elaborados desde os primeiros tempos do cristianismo, ‒ que não têm por objetivo aprisionar o iconógrafo, privando-o da sua capacidade criativa, mas de garantir a autenticidade do que vem figurado ‒, consentiram nos séculos próximos ao ano 1000, mas também nos séculos XIV e XV, a realização de obras de extrema beleza e de grande conteúdo espiritual.

Os iconógrafos, chamados «aqueles que expressam a vida», eram monges, que uniam ao estudo da pintura a ascese espiritual. O iconógrafo não procura um conceito particularmente seu de beleza e as regras da arte da pintura do iconógrafo não são criadas pelos pintores, mas ditados pelos cânones religiosos e guardados pelos Padres da Igreja, depositários da verdade.[1]

 

A técnica do ícone

Segundo a tradição, o iconógrafo, antes de escrever um ícone deve seguir uma estrada: ele deve purificar-se; deve rezar com lágrimas nos olhos para que Deus entre no seu coração e procurar um sacerdote para que recite sobre si o hino da Transfiguração. Depois de escrever o seu ícone, de joelhos, com os olhos no motivo evangélico e no seu coração grande amor por Deus, pela Mãe de Deus e pelos santos, deverá descrever tanto a história quanto a teologia do seu ícone a um sacerdote. Se for declarado digno de escrever os sagrados ícones, receberá uma bênção especial com a unção das mãos com o sagrado miron (óleo santo do crisma), para que, por meio do dom do Espírito Santo, possa cumprir o seu ministério espiritual. O caminho se conclui com o voto, da parte do iconógrafo, de não pintar outro tipo de imagem que não seja sacra e de colocar-se a serviço da Igreja, da fé e da vida dos fiéis, aceitando em doce obediência os cânones da pintura e as normas iconográficas universais com suas técnicas próprias. Comprometer-se-á que no ato de escrever o ícone, intensificará a leitura da Sagrada Escritura, a meditação e o jejum, para que a sua arte seja fruto da contemplação e manifestação do mistério contemplado.

A técnica da escritura de um ícone, dividida em 7 etapas, corresponde aos 7 dias da narrativa bíblica da criação.

1) A base do ícone é uma tábua de madeira sobe a qual se estende uma tela que depois vem recoberta com diversas camadas (7 camadas) de gesso branco. É a criação da luz. Depois de ser acuradamente lixada, 2) incide-se o desenho e em seguida, com um delicadíssimo procedimento vem aplicado o ouro. É o firmamento com a separação das águas em cima e embaixo.

3) Depois tem início a colocação das diversas camadas das cores, feitas de terra (É a terra), elementos naturais misturados ao ovo (emulsão), 4) da mais escura à mais clara. Essa técnica é chamada iluminação e é fundamental, sobretudo na execução dos rostos, porque indica o caminho do homem na direção da nova criatura, a criatura iluminada por Deus. O tema central do ícone é, de fato, a luz e o ouro, usado largamente, é o sinal da luz divina que transfigura a realidade. O sol e a lua que resplandecem no firmamento. Deus se fez homem, veio da terra.

5) Traços brancos dão movimento e vida às imagens. São os animais. 6) Por fim se escrevem os nomes dos ícones. É a criação do homem.

Ao iconógrafo não interessa imitar a realidade, mas desvelar a substância: por isso as proporções são alteradas e se segue um determinado cânone rico de significados simbólicos.

O ícone nunca é autografado, porque não foi escrito pelo iconógrafo, mas pelo dedo de Deus, pelo Espírito Santo, pela Igreja.

7) O sétimo e último passo é a contemplação do ícone. Deus descansou do seu trabalho. Somente na contemplação chegamos ao protótipo, porque diante dos olhos temos o deuterótipo, a cópia, a dimensão sacramental.

 

Para entrar na escola do ícone

Para o homem contemporâneo “entrar na escola do ícone”, isto é aprender a ler a Palavra de Deus escrita com pincel e tinta, cores e nuances, degrades, madeira, gesso, ouro e ovo, terra e água e imagens distorcidas e/ou desproporcionais, se torna particularmente difícil, porque sobre a sua percepção estética influenciaram fortemente o realismo da arte pictórica dos últimos séculos, a fotografia e o cinema, com a sua total capacidade ilusionista. O ícone é ascético e anti-ilusório.

Infelizmente, o cristianismo no nosso país, herdeiro de uma evangelização tardo-medieval e moderna, barroca devocional, ainda não é capaz de perceber o ícone, senão puramente sob o ponto de vista da estética. Embora a estética no ícone seja importante, visto que o componente emotivo faz parte da linguagem simbólica, contudo, ela se apresenta secundária em relação ao conteúdo interior da imagem.

Por outro lado, o artista cristão, ‒ com a sua capacidade de criar imagens e cores, desinformado, ou melhor, não iniciado no processo da escritura iconográfica, “canonizado” pela Tradição da Igreja e transmitido por meio da categoria litúrgica do érgon (da obra que se aprende com um mestre iniciado), não do nous (do aprendizado por meio do conhecimento teórico) ‒, corre dois grandes perigos, concomitantes, e ao mesmo tempo, extremos, a saber: 1) o perigo de simplesmente copiar, de modo estilizado, as imagens barrocas, ou retratistas, fixadas no inconsciente coletivo religioso do povo brasileiro, especialmente do povo simples, e assim distorcer completamente o escopo do ícone; 2) o invencionismo, que corresponde à criação sem fundamentos na Tradição, que gera distorções, quando não, agressões à fé católica.

Para entrar na escola do ícone é preciso muita ascese da parte do artista, como também a capacidade de entrar na dinâmica apresentada pela Sacrosanctum Concilium 23. A razão é clara: ícone e liturgia não existem separadamente, tudo o que se diz de um se pode dizer do outro.

Para conservar a sã tradição e abrir ao mesmo tempo o caminho a um progresso legítimo, faça-se uma acurada investigação teológica, histórica e pastoral acerca de cada uma das partes da Liturgia (da iconografia) que devem ser revistas. Tenham-se ainda em consideração às leis gerais da estrutura e do espírito da Liturgia (da iconografia), a experiência adquirida nas recentes reformas litúrgicas e nos indultos aqui e além concedidos (cânones da iconografia). Finalmente, não se introduzam inovações, a não ser que uma utilidade autêntica e certa da Igreja o exija, e com a preocupação de que as novas formas como que surjam a partir das já existentes.[2]

 

Dom Jerônimo Pereira Silva (osb).
Doutor em Sagrada Liturgia.


[1] A arte iconográfica não foi inventada pelos pintores, mas é instituição e tradição da Igreja universal. (VII Concílio Ecumênico – Niceia, 787).

[2] Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia, 23. In: Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2002. Nosso: inserções entre colchetes e grifos em itálico.