Solenidade da Bem-aventurada Virgem Maria

Antes de olharmos para o céu…

Por motivos pastorais, a Igreja no Brasil, transfere a Solenidade da Assunção de Nossa Senhora, do dia 15 de agosto para o domingo seguinte a esta data. É conveniente recordar que é sempre Páscoa. O domingo que cede lugar à solenidade da Assunção da Bem-aventurada Virgem Maria é o dia em que celebramos a ressurreição do Senhor, na qual está inserido o mistério da Assunção da Mãe de Deus. “Através dela, a eternidade rejuvenesce, aparecendo-nos sob forma de uma criança”[1], mas não só, a eternidade que rejuvenesceu através dela, no domingo se torna alimento para nós. O domingo, por excelência, é o dia da eucaristia.

Na eucaristia temos o pão da imortalidade que se identifica com o pão nosso de cada dia. Identifica-se sem confundir-se. A eucaristia é precisamente o sinal e a garantia cotidiana daquela salvação que eleva o homem todo, na sua realidade complexa. Este pão resgata o homem da corruptibilidade da morte e o introduz, de forma antecipada, na dimensão dos ressuscitados. É pela comunhão nesse sacramento que de forma antecipada chegamos à glória da ressurreição.

É o dia em que celebramos também o prenúncio da nossa ressurreição, e esta Solenidade nos aponta para isso. O Catecismo da Igreja Católica nos lembra que “a Imaculada Virgem, preservada imune de toda mancha da culpa original, terminado o curso da vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celeste. E, para que mais plenamente estivesse conforme a seu Filho, Senhor dos senhores e vencedor do pecado e da morte, foi exaltada pelo Senhor como Rainha do universo”. E conclui: “A Assunção da Virgem Maria é uma participação singular na Ressurreição de seu Filho e uma antecipação da ressurreição dos outros cristãos”[2].

O dogma da Assunção de Maria foi definido pelo papa Pio XII, em 1950. A Igreja, na verdade, celebra neste dia a realização do “Mistério Pascal” de Cristo na Virgem Maria, a “cheia de graças”, sem mancha alguma do pecado original, aquela que o Pai quis associar à ressurreição de Jesus, o Filho de ambos. Olhemos com atenção para os textos da Sagrada Liturgia e aprendamos quais frutos colhemos dessa Solenidade.

 

… escutemos o Lecionário…

As três leituras propostas pelo Lecionário para a Missa do Dia, todas do Novo Testamento, nos falam muito vivamente dos valores da assunção de Nossa Senhora, nos revelam o lugar que tal mistério ocupa no plano da salvação e nos ensinam como vivermos plenamente a nossa humanidade, que encontra seu termo no mesmo lugar que a Mãe de Deus encontrou o seu.

Na primeira leitura, tirada do livro do Apocalipse (Ap 11,19a; 12,1.2.-6a.10ab), João nos fala de uma das suas visões, imagens de Maria, imagem da Igreja. Ele vê, em primeiríssimo lugar, o Templo contendo a “arca da aliança”, depois vê “uma mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas”. A mulher está grávida e prestes a dar à luz. “Ela deu à luz um filho homem, que veio para governar todas as nações”. A mulher é perseguida por um grande dragão. O Filho é levado para junto de Deus e a mulher levada para o lugar que “Deus lhe tinha preparado”. O texto joanino se conclui mostrando que este evento é a síntese da história da salvação: “Agora realizou-se a salvação, a força e a realeza do nosso Deus, e o poder do seu Cristo”.

Na segunda leitura Paulo (1 Cor 15,20-27a), coloca a ressurreição de Cristo não como única, mas como “primícias”, isto é, como primeira, como inauguração de uma série que se eleva ao infinito: “Como em Adão todos morreram, assim também em Cristo todos reviverão”. Existe uma ordem sequencial necessária, segundo Paulo: “em primeiro lugar Cristo; depois os que pertencem a Cristo”. Assim Paulo anuncia com determinação a morte da morte.

Na terceira leitura (Lc 1,39-56), vemos a belíssima cena de uma jovem, que apenas soube que estava grávida do Filho de Deus, “Naqueles dias, partiu para a região montanhosa, dirigindo-se apressadamente” para servir à sua prima idosa Isabel, também ela grávida. Isabel ao vê-la fica cheia do Espírito Santo e “com grande grito exclama” a frase bíblico-evangélica mais repetida em todo o mundo: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!” e conclui a sua “gritaria” com uma das primeiras profissões de fé pascais registradas pelos cristãos primitivos: aquela jovem de nome Maria carrega no ventre o seu “Senhor”. Como toda pessoa apaixonada, Maria que estava apaixonadíssima por Deus, cantou o seu belo hino, repetido pela Igreja todos os dias ao crepúsculo: o Magnificat. O trecho do Evangelho se conclui com uma frase significativa para a Solenidade que ora celebramos: Maria “voltou para casa”.

 

… para vivermos vida de glorificados.

Isso mesmo, a Solenidade da Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria aos céus não é outra coisa senão a celebração do seu retorno à casa e a prefiguração do nosso. Maria é a “arca da nova aliança”, ou seja, no seu ventre guardou Aquele que por seu sangue derramado na cruz nos colocaria definitivamente em comunhão com Deus. A afirmação de João é maravilhosa: “Ela é uma mulher”, filha, esposa, mãe, serva e rainha, isto equivale a dizer que ela é gente como a gente. Ela é figura de toda pessoa humana que diz sim à vocação da vida, figura de todo aquele que diz sim à Vida, Jesus Cristo. Assim ela se torna imagem da Igreja, sempre grávida de Jesus Cristo, sempre perseguida pelos sistemas de morte, pelo dragão que quer devorar o seu Filho, isto é, que quer impedir sua mensagem, que quer fazer “abortar” sua missão. Por isso ela foi levada, segundo o mistério que hoje celebramos, ao “lugar que Deus lhe tinha preparado”. O que é ressuscitar senão estar plena e eternamente junto de Deus? Quem com ele está já ressuscitou, quem dele se afasta já se declara morto.

Assim, a Virgem da Assunção se torna anúncio e meta final da redenção: a glorificação da humanidade em Cristo. “Muitos não gostam de ouvir falar em ‘salvação das almas’, – escreveu alguém -. Expressando-se assim, parece-lhes que a vida, com suas cores, sabores e complementos que a tornam agradável, vá desaparecer, parece-lhes que o corpo não serve para nada. Têm razão, porque não será assim. Maria, assunta ao céu é garantia de que o homem todo se salva, de que os corpos ressurgirão. Para os cristãos a salvação é ressurreição dos corpos, um mundo novo e uma terra nova”[3]. Eis porque João disse ter visto no céu “uma mulher”. Essa mulher/humanidade é elevada na sua completude, expressou a oração da coleta desta missa: “Elevaste à glória do céu em corpo e alma a imaculada Virgem Maria”.

Esta “mulher/humanidade” se expressa através do canto. O seu cântico é profético. Ele nos ensina a olhar a história do mundo e, consequentemente, a nossa história pessoal, com outros olhos. Deus é visto como Senhor, todo-poderoso, santo e ao mesmo tempo visto como um Deus próximo e pessoal “meu
salvador”; excelso e transcendente, e ao mesmo tempo cheio de zelo e amor pelas suas criaturas. O cântico também evidencia a triste realidade de divisão que se acentua sempre mais no mundo: potentes e humildes, ricos e pobres, fartos e famintos, mas não se detém em contemplar como expectador indiferente a catástrofe da calamidade mundial. Anuncia a reviravolta que Deus decidiu operar em Jesus Cristo entre essas “categorias”: “Derrubou dos tronos os poderosos…”.

No seu cântico, Maria fala de si: “Doravante todas as gerações me chamarão bem-aventurada”. “Desta glorificação de Maria somos nós mesmos testemunhas ‘oculares’. Que criatura humana foi mais amada e invocada, na alegria, na dor e no pranto, qual nome é aflorado mais do que o seu sobre os lábios dos homens? Não é isto o equivalente a chamá-la bem-aventurada? A qual criatura, depois de Cristo, têm os homens elevado mais orações, hinos, catedrais? Que rosto se procurou reproduzir na arte mais do que o seu?”[4]. Qual homem ou mulher há na face da terra mais títulos do que ela?

A ela recorrem os homens, as mulheres, as crianças, os jovens, os anciãos. A ela se recorre no período do plantio e da colheita, da chuva e da seca, na hora do parto e da partida, em tempos de vestibular e primeiro dia de aula, nas festas e nos funerais, nos tempos de bonança e de catástrofes, no pranto e na alegria, na esperança e no desespero. Ela é a Senhora da boa viagem, do bom parto, da boa morte, das luzes, da guia, das dores, das alegrias ou dos prazeres. Ela tem o rosto de cada povo: é de Lourdes, é de Fátima, é de Guadalupe, é Aparecida no Brasil. A seus pés encontram refúgios freiras e prostitutas, padres e cafetões, papas e ateus, cristãos e muçulmanos. Todas as línguas nesse dia cantam: “Rainha dos céus, alegrai-vos!”

 

Dom Jerônimo Pereira Silva, osb.
Doutor em Sagrada Liturgia.
Membro do Centro de Liturgia Dom Clemente Isnard


1 D. FULTON e J. SHEEN. O primeiro amor do mundo. Porto: Editora Educação Nacional, 1955. p. 171.

2 CIgC, n. 966.

3 Comentário in Missal dominical: missal da assembleia cristã. São Paulo: Paulus, 1995. p. 1346.

4 R. CANTALAMESSA, Dal vangelo alla vita, PIEMME, Milano 2012, 408.

 

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