O monaquismo beneditino e a reforma litúrgica dos séculos XIX e XX, uma proposta de leitura

 

O preceito de São Bento (480-560) de que “Nada se anteponha ao Ofício Divino”[1], fez com que ao longo dos séculos os mosteiros beneditinos permanecessem lugares de um contínuo celebrar. As horas da oração coral[2] desde sempre marcaram o ritmo do dia, determinaram os horários do sono, da alimentação, do trabalho etc. O monge, segundo a Regra Beneditina (RB), deveria cultivar uma oração contínua ou pelo menos frequente[3]. A oração litúrgica tornou-se o “apostolado monástico por excelência”[4]. São Bento, que vive na “época de ouro da liturgia”[5] bebendo do grande período de criatividade e de intercâmbio entre Oriente e Ocidente, entende que à oração nada se deve antepor porque ela é a manifestação mais viva da presença de Cristo entre os seus.

Usando um sistema de comutação repete o preceito dado aos monges no cap. 4, 21: “Nada antepor ao amor de Cristo“, retomado no cap. 72, 11: “Nada absolutamente anteponham a Cristo“, identificando Ofício Divino (“Liturgia” das Horas) com a manifestação do Cristo (Cristofania), o Liturgo por excelência, ao qual nada se deve antepor. Porém, a contextualização dos citados versículos deixa transparecer que nos ambientes monásticos a oração está intimamente conectada à dimensão ascético-jurídica (obrigação coral) e não litúrgico-ritual[6]. A prova substanciosa disto é que, também nos mosteiros, ao longo dos séculos uma verdadeira piedade extralitúrgica/devocional foi introduzida no ritmo da vida monástica. Um dado da liturgia porém se manteve inalterado, ou salvaguardado, ao longo dos séculos nos mosteiros: a dimensão comunitária[7]. A própria forma de oração monástica coral impôs que as celebrações, ao menos da Liturgia das Horas e das missas solenes e pontificais, fossem de caráter ministerial envolvendo sempre um certo número de atores: hebdomadário, schola cantorum, salmistas, acólitos, leitores, coro etc.

Embora não seja verdade histórica que esse tenha sido o ponto inspirador do movimento ou dos movimentos surgidos nos mosteiros em torno da liturgia a partir do século XIX, não é também verdade que tal aspecto não tenha influenciado a maré de monges que viram na liturgia o “cume e a fonte” de toda a vida da Igreja[8] e em torno da qual organizaram um verdadeiro “batalhão”, batizado de Movimento Litúrgico, que culminou com a Reforma Litúrgica do Concílio Vaticano II, Sem entrar na discussão da periodização do Movimento Litúrgico (ML), para o nosso escopo, aceitamos as fases indicadas por R. Guardini:”O Movimento Litúrgico primeiramente desenvolveu uma fase restauradora; depois aquela acadêmica; por fim aquela realística[9].

Na primeira fase indicada por Guardini a figura de destaque é o fundador e primeiro abade de Solesmes Dom Próspero Guéranger (1805-1875). Diante da situação quase que anárquica da igreja na França com o surgimento do movimento neo-galicano e das edições de missais descarnados de elementos da liturgia romana, Guéranger “vê na unidade litúrgica com Roma a premissa indispensável para toda verdadeira vida eclesial[10]. Funda a abadia de Saint Pierre di Solesmes, restaura a vida monástica, o canto gregoriano. Três obras suas são de fundamental importância: Considérations sur la liturgie catholique[11], Institutions liturgiques[12] e Année liturgique[13]. Com razão chama Guardini essa fase de “restauradora” porque a preocupação primeira do beneditino não é outra senão aquela da restauração da liturgia romana cujo auge se encontra, na sua concepção, na Idade Média.

Uma segunda fase, porém, lentamente vai se abrindo com o surgimento do tema das “Origens” e tem como figura de destaque o beneditino solesmense Dom Ferdinand Cabrol (1855-1937)[14]. Para Cabrol, a liturgia das origens e não aquela medieval é a fonte na qual inspirar-se, é a expressão paradigmática da oração válida para todo tempo. Essa é uma fase realmente “acadêmica” que indicará, por meio do estudo da história da liturgia, a necessidade de uma reforma dos ritos. Nesse contexto se insere a Abadia de Beuron na Alemanha, fundada em1863. Beuron se diferencia de Solesmes porque procura que a vida litúrgica não se restrinja ao coro, mas sim, que penetre a vida no seu conjunto, impregnando-a toda de santidade, ideia expressa na chamada “arte de Beuron” vivamente retratada na majestosa basílica do Mosteiro de São Bento de São Paulo[15].

O Movimento de Beuron se estende por meio das suas fundações: Bélgica (Maredsous), Tchecoslováquia (Emaús-Praga) e Áustria (Seckau). A sistematização desse movimento se deu no ambiente monástico belga de Maredsous e de Mont-César através do monge de marcante personalidade, Dom Lambert Beaudoin (1873–1960), que se apoiou na célebre frase de São Pio X: “A participação ativa (dos fiéis) aos sacrossantos mistérios e à oração publica e solene da Igreja”[16] e a transformou em fim último do que passou a chamar-se Movimento Litúrgico. No mundo alemão nesse período se destacou a abadia de Maria Laach com os seus monges K. Mohlberg e Odo Casel (1886-1948). Na Itália se destacaram o Mosteiro de Finalpia com a criação da Rivista Liturgica (1914) que se firmou graças à intensa atividade litúrgica do abade do mosteiro Dom Emanuele Caronti (1882-1966) e a contribuição de Dom Ildefonso Schuster (1880–1954). Dois outros grandes nomes monásticos se destacam no mundo italiano na fase do pós segunda guerra: Cipriano Vagaggini (1909-1999), que escreve “O sentido teológico da liturgia” (1957)[17], às vésperas do Concílio Vaticano II, introduzindo a liturgia no âmbito da teologia, e Salvatore Marsili (1910-1983), que introduziu o pensamento de Odo Casel na Itália. Essa fase que antecede imediatamente ao Concílio é certamente a fase realística.

Com o “Aviso de 1885” se decretou o fechamento dos noviciados das casas religiosas do Brasil. Os mosteiros beneditinos vieram a desfalecer por tal decreto, com um número reduzido de monges. O Abade Geral da Congregação Beneditina do Brasil, Frei Domingos da Transfiguração Machado, prevendo a extinção desta, pediu socorro ao Papa Leão XIII, o qual convocou os monges da então florescente Congregação de Beuron para repovoar os mosteiros brasileiros. No dia 17 de agosto de 1895, aportou na cidade do Recife, a primeira comitiva de monges, imbuídos do espírito do movimento litúrgico de Beuron.

O ML no Brasil também nasceu da iniciativa de um monge beneditino Dom Martinho Michler (1901-1969), em 1933[18]. Tudo era novo: a liturgia era apresentada como além das rubricas, mais do que alegorismos. No Brasil se começou a descobrir uma teologia da liturgia[19]. Depois de Dom Martinho Michler uma série de monges como Dom Beda Keckeisen na Bahia, Dom Polycarpo Amstalden em São Paulo, Dom Hidebrando Martins no Rio de Janeiro, e um verdadeiro movimento monástico feminino em Belo Horizonte sob a guia da Abadessa Dona Luzia Ribeiro de Oliveira levaram adiante as ideias da participação ativa dos fieis na liturgia. Cientes de que nada se pode antepor ao Cristo, o liturgo por excelência. O último grande elo do monaquismo brasileiro com o ML foi Dom José Clemente Isnard (1917—2011), verdadeiro pai e promotor da Reforma Litúrgica do Concílio Vaticano II em terras brasileiras.

Nós, os jovens monges do século XXI, observamos a disponibilidade de nossos pais e mães dos séculos precedentes e entendemos que ainda hoje temos um papel a desenvolver no seio da Igreja, e esse papel nasce, tem sua fonte, exatamente no princípio apontado por Nosso Pai São Bento: Na Igreja “Nihil Operi Dei præponatur” (Nada se anteponha à liturgia).

 

Dom Jerônimo Pereira Silva, OSB
Monge do Mosteiro de São Bento de Olinda
Doutor em Sagrada Liturgia
Membro do Centro de Liturgia Dom Clemente Isnard.

jeronimo.osb@gmail.com

 


[1] A Regra de São Bento. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1992, 43, 3.

[2] Sobre esse tema específico ver A. Elberti, Canto di lode per tutti i suoi fedeli, origini e sviluppo della liturgia delle ore in Occidente, San Paolo, Cinisello Balsamo (Milano) 2011, 282-296 e R. F. Taft, La liturgia delle ore in Oriente e Occidente, le origini dell’ufficio e il suo significato per oggi, Lipa, Roma 2001, 177-184.

[3] Cf. RB 4,56.

[4] A. Elberti, Canto di lode per tutti i suoi fedeli, 283.

[5] Cf. M Paternoster, Corso fondamentale di iniziazione alla liturgia, Bari, 2007-2008, 37.

[6] Cf. RB 18, 22-25; 20. São Bento não deixa transparecer o conceito de liturgia como “cume e fonte”. Cf. S. Rosso, Il segno del tempo nella liturgia, anno liturgico e liturgia delle ore, Elledici, Leumann (Torino) 2002, 405.

[7] Segundo o prof. Grillo a “Liturgia não é nem privada nem pública: é comunitária, ou seja, é muito diferente do ser cada um sozinho consigo mesmo diante do problema da salvação; mas é diferente também do ser simplesmente em público, sob o olhar neutro e objetivo de um ‘estranho'”. A. Grillo, La riforma liturgica e il vaticano II, quale futuro?, Pazzini Editore, Villa Verucchio (RN) 2009, 13.

[8] Cf. SC 10.

[9] R. Guardini, anotações no diário de 26 de maio de 1953. Citado em A. Grillo, Oltre Pio V, La riforma liturgica nel conflito di interpretazioni, Queriniana, Brescia 2007, 31.

[10] B. Neunheuser, Movimento litúrgico, in Dicionário de Liturgia, ed. D. Sartori – A. M. Triacca, Paulus 19922, 791.

[11] A pequena obra, publicada no jornal “Memorial catholique” em 1830, foi reeditada em P. Guéranger, Mélanges de liturgie, d’histoire et de théologie, vol. I (1830-1837), Solesmes 1887, 15-110.

[12] P. Guéranger, Institutions liturgiques, Société générale de la librairie catholique, Paris-Bruxelas 1878.

[13] Sobre essa obra cf. F. Brovelli, per uno studio de “L’année liturgique” di P. Guéranger. Contributo alla storia del movimento liturgico, CLV-Ed. Liturgiche, Roma 1981.

[14] Dom Ferdinad Cabrol era monge professo da abadia de Solesmes, e consequentemente ligado a Guéranger. Em 1896 foi enviado à abadia de Farnboroug, na Inglaterra, e eleito o primeiro abade em 1903. Cercou-se de eruditos e transformou a abadia um grande centro de cultura, nos fins do sec. XIX e inicio do séc. XX. Cf. A. M. B. Calapaj, Comprendere la liturgia attraverso la storia. A proposito di alcune prospettive di storia della liturgia fra otto e novecento, in La liturgia nel XX secolo: un bilnacio, ed. F. G. B. Trolese, Messaggero, Padova 2006, 99-100.

[15] B. Neunheuser, Movimento litúrgico, 791.

[16] Pio X, Motu proprio Tra le sollecitudini, in ASS 36 (1903-1904), 531.

[17] A obra encontra-se em português e é de fundamental importância para se entender o ambiente que gerou a Sacrosanctum Concilium: C. Vagaggini, O sentido teológico da liturgia, Loyola, São Paulo 2009.

[18] Cf. C. J. Isnard, O movimento litúrgico no Brasil. Reminiscências para a história do movimento litúrgico no Brasil – Apêndice, in B. Bott, O movimento litúrgico, Paulinas, São Paulo 1978.

[19] Sobre a história completa do ML no Brasil cf. J. Ariovaldo da Silva, O movimento litúrgico no Brasil, estudo histórico, Vozes, Petrópolis 1983.

 

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