Pensando à Solenidade de Corpus Christi, e me preparando para cantar o II prefácio da Santíssima Eucaristia – Os frutos da Santíssima Eucaristia (De fructibus Ss.mæ Eucharistiæ) –, com o intuito de bem celebrar, me lembrei que há alguns dias recebi o e-mail de um padre, que por razões de discrição omito o nome, com o seguinte conteúdo:

Dom Jerônimo, acompanho seu artigos na revista de Liturgia (pddm). Uma pergunta: existe alguma orientação da CNBB que permite a inserção de outro prefácio na oração eucarística V?

Ao meu ver ela tem uma unidade literária-teológica, oração tipicamente brasileira, composta num contexto muito específico, colocar outro prefácio é quebrar essa unidade…

Mas existe alguma orientação da CNBB? Ela também é de prefácio móvel como a I, II e III?

Como sei que essa é uma questão que diz respeito a uma realidade não tão particular como possa parecer, aproveito para partilhar a minha resposta pessoal, depois de ouvir um esperto no tema, ao qual faço referência no texto que segue.

 

Caríssimo padre,

Benedicite!

Obrigado pelo e-mail e pela gentileza da leitura dos meus artigos. Caro padre, o senhor tem razão no que diz respeito à conservação da integridade literária-teológica da Oração Eucarística (OE) V. Desconheço, porém, qualquer pronunciamento da CNBB sobre o tema. Aqui, obviamente, está em jogo, além da compreensão teológica, a normativa como meio para a garantia da “sequência dialogal discursiva da teologia iniciada no prefácio”, segundo as palavras do liturgista padre Hernaldo Pinto Farias, doutor especializado no que tange à V OE.

Tenho entre as mãos a tese doutoral do padre apenas citado, “A Oração Eucarística do congresso eucarístico de Manaus. Uma contribuição ao estudo da reforma litúrgica no Brasil”, defendida e publicada no Santo Anselmo em 2012 que não trata absolutamente de qualquer documento da CNBB sobre o tema proposto. Porém, devo salientar, a partir da sua pergunta, que, embora a OE V tenha sido construída a partir da estrutura do Canon Romano (CR), não foi concebida com prefácio móvel, como é o caso do próprio CR e da III OE.

A II e a IV OE têm prefácios fixos. O da IV é rigorosamente proibido trocar, segundo a Instrução Geral do Missal Romano (IGMR 365d), o da II é permitido, porém, sob condições. Diz a IGMR 365b:

A Oração Eucarística II, por suas características particulares, é mais apropriadamente usada nos dias de semana ou em circunstâncias especiais. Embora tenha Prefácio próprio, pode igualmente ser usada com outros prefácios, sobretudo aqueles que de maneira sucinta  apresentem o mistério da salvação, por exemplo, os prefácios comuns. Quando se celebra a Missa por um fiel defunto, pode-se usar a fórmula própria proposta no respectivo lugar, a saber antes do Lembrai-vos também.

Esse número da IGMR foi transformado em rubrica no MR editio typica (cf. OR, MR editio typica, 3. ed. 2008, 99). A tradução italiana desta rubrica, infelizmente não presente na edição do MRbr, sublinha que aquele prefácio faz parte da estrutura da OE[1]. O mesmo serviria para a V OE, se na tradução da edição típica para o Brasil tal rubrica fosse reproduzida para ambas. Não poderia, no caso, a CNBB fazer uma observação, com a devida permissão, a respeito da OR V no número 365 da IGMRbr? Ou dedicar-lhe ao menos uma nota de pé de página?

Eu, particularmente, evito sempre de usar outro prefácio tanto para a II quanto para a V; VI A, B, C e D; VII, VIII, IX; X; XII OE por razões literárias, mistagógicas, pastorais e teológicas.

Para a festa dos santos utilizo sempre a III por causa do memento próprio, pensado exatamente para esse fim quando foi composta nos anos 60[2]. O CR nas grandes solenidades ou nas festas/memórias dos santos nele citados. A IV e a II, as minhas preferidas, aos domingos. A II e a V nos dias feriais do TC. Nos dias feriais do TQ faço um investimento maciço no uso das duas OE De Reconciliatione (OE VII e VIII no MRbr). Gosto de usar as pro variis necessitatibus (OE VI A, B, C e D no MRbr) nas férias do TP por causa do post-sanctus: “Na verdade… Como outrora aos discípulos, ele nos revela as Escrituras e parte o pão para nós”, mantendo os prefácios próprios, em consonância com o princípio que uso para a II e a V OE. Não me lembro de ter usado as OE para crianças (OE IX, X, XI no MRbr).

Infelizmente, para muitos falsos “atentos à pastoral”, o que rege é o tamanho da OE, então se prefere a II e a V porque são menores, logo fazem um “arranjo” mudando o prefácio, utilizando prefácios completamente disjuntos do conteúdo que segue, por exemplo, os prefácios dos santos, da Mãe de Deus, das Solenidades, das missas rituais, para as diversas necessidades e votivas.

Alguém poderia alegar que nesse caso se usariam pouco as OE com prefácios fixos, ou o contrário, o que não é verdade, porque, apesar da proliferação de santos no atual calendário do MR3 (para se usar as OE com prefácios móveis), ainda se goza de quase 200 dias livres no ano[3], para o uso das OE com prefácios fixos. O que me parece ainda proporcionalmente bastante equilibrado.

Penso que um presidente da celebração eucarística atento à mistagogia não “misturaria” as OE II e V com prefácios “espúrios”. Repito, está em jogo a fineza da teologia litúrgica mistagógica e não simplesmente a normativa ou a falsa “pastoralidade”. Uma homilia bem equilibrada permite um amplo tempo para a execução orante (quem dera in cantu) da “Grande Oração” com a devida atenção de manter a sua unidade.

Desejo-lhe coragem e uma boa eucaristia no dia do Senhor que se aproxima.

In pace fixus.

Dom Jerônimo Pereira Silva, OSB.
Doutor em Sagrada Liturgia.
Membro do Centro de Liturgia Dom Clemente Isnard.

 


[1] Messale Romano, CEI, Città del Vaticano 19832, 393.

[2] A. Bugnini, La riforma litúrgica (1948-1975), CLV – ed. Liturgiche, Roma 1997, 451-452; V. Raffa, Liturgia eucaristica. Mistagogia della messa: dalla storia e dalla mistagogia alla pastorale pratica. Nuova edizione ampiamente riveduta e aggiornata secondo l’editio typica tertia del Messale Romano, CLV – Ed. Liturgiche, Roma 2003, 741-742.

[3] Cf. J. A. Goñi Beásoain de Paulorena, «El peligro del incremento de las celebraciones litúrgicas el Calendario Romano General», EO 32 (2015) 71-99.

 

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