A liturgia cristã, desde sempre se manifestou como um hino de adoração à Santíssima Trindade. Embora as fórmulas eucológicas mais antigas invoquem as três pessoas distintamente, como é o caso do Glória da Missa ou o Te Deum, da Liturgia da Horas, a Liturgia Romana, de modo particular, acentua tal aspecto nas fórmulas doxológicas trinitárias: ao Pai, pelo Filho no Espírito Santo.

Os primeiros sinais de uma devoção litúrgica à Santíssima Trindade apareceram nos mosteiros beneditinos da Gália superior, nos fins do VIII século, fruto da devoção privada com relação à Santíssima Trindade[1]. Dedicaram-se Igrejas abaciais à Santíssima Trindade na França, na Alemanha e na Itália. No século X, um certo Estevão († 920), o bispo de Liegi (França), compôs um Ofício Votivo à Santíssima Trindade, porém sem a pretensão de instituir uma festa. Tal Ofício foi usado até a Reforma do Breviário, operada pelo Concílio Vaticano II.

Uma festa autenticamente litúrgica em honra da Santíssima Trindade surgiu nos inícios do séc. XI, nalgum mosteiro francês. O mosteiro de Cluny, por volta do ano 1030, testemunha tal festa celebrada no primeiro domingo depois da Solenidade de Pentecostes. Nos séculos sucessivos (XII e XIII) essa celebração encontrou fortíssimas resistências da parte da Igreja de Roma. Nomes como Bernoldo de Constança († 1100), Potone de Prüm († 1152) e Sicardo de Cremona († 1215) se demonstraram fortes opositores. O papa Alexandre III († 1181) apresentou uma razão teológica para tal resistência, indicando que alguns começaram o uso de celebrar a festa da Santíssima Trindade no dia da oitava de Pentecostes, outros no último domingo do ano eclesiástico, porém a Igreja Romana não adotava tal uso, porque todo domingo, ou até mesmo todo dia (imo quotidie – na liturgia), essa memória é celebrada (memoria celebretur)[2]. Apesar dessa fortíssima resistência da Igreja Romana, por causa da grande influência de Cluny, a festa se difundiu largamente, especialmente nos países franco-germânicos, de modo que, no ano de 1334, o papa francês, João XXII (1249-1334), que inaugurou o períodos dos papas de Avinhão[3], a aprovou como festa litúrgica oficial e a estendeu à toda a Igreja, para ser celebrada sempre no primeiro domingo depois de Pentecostes.

A escolha da data talvez esteja ligada ao fato que o domingo que seguia a Solenidade de Pentecostes era livre, conforme atesta o Ordinário de Gregório X († 1276): In dominica prima post festum pentecostes. que caret octava. Die sabbati in vigilia ipsius dominice et usque ad domincam primam de adventu domini fit officium de die et nocte ut continetur in ordine. Et utitur ecclesia colore viridi[4].

O formulário escolhido por muitas Igrejas foi o da missa votiva Missa de Sancta Trinitate que Alcuíno († 804) havia inserido entre a série de missas semanais por ele organizada e enviada aos monges de Saint-Vaas e Fulda. A Missa de Sancta Trinitate era prevista para ser celebrada no domingo[5].

 

Missa de Sancta Trinitate

 

Collecta Omnípotens sempitérne Deus, qui dedísti fámulis tuis in confessióne veræ fídei, ætérnæ Trinitátis glóriam agnóscere, et in poténtia majestátis adoráre Unitátem: quǽsumus; ut, ejúsdem fídei firmitáte, ab ómnibus semper muniámur advérsis. Per Dóminum nostrum.
Super Oblata Sanctífica, quǽsumus, Dómine, Deus noster, per tui sancti nóminis invocatiónem, hujus oblatiónis hóstiam: et per eam nosmetípsos tibi pérfice munus ætérnum. Per Dóminum nostrum.
Praefatio Vere dignum et justum est, æquum et salutáre, nos tibi semper et ubíque grátias ágere: Dómine sancte, Pater omnípotens, ætérne Deus: Qui cum unigénito Fílio tuo et Spíritu Sancto unus es Deus, unus es Dóminus: non in unius singularitáte persónæ, sed in uníus Trinitáte substántiæ. Quod enim de tua glória, revelánte te, crédimus, hoc de Fílio tuo, hoc de Spíritu Sancto sine differéntia discretiónis sentímus. Ut in confessióne veræ sempiternǽque Deitátis, et in persónis propríetas, et in esséntia únitas, et in majestáte adorétur æquálitas. Quam laudant Angeli atque Archángeli, Chérubim quoque ac Séraphim: qui non cessant clamáre cotídie, una voce dicéntes:
Ad Complendum

 

Profíciat nobis ad salútem córporis et ánimæ, Dómine, Deus noster, hujus sacraménti suscéptio: et sempitérnæ sanctæ Trinitátis ejusdémque indivíduæ Unitátis conféssio. Per Dóminum.

 

O formulário de Alcuíno passou de Fulda[6] ao sacramentário Paduense[7], de tipo gregoriano, e dali para os missais plenários e desses para o missal impresso de 1474[8], e dessa forma foi acolhido no Missal Romano da reforma litúrgica tridentina de 1570/1962[9]. O formulário sofreu ligeiras modificações na edição típica do Missal Romano do pós Concílio Vaticano II (1970/1975/2008)[10], a saber: a Coleta foi reformulada, com a introdução de expressões bíblicas; a Oração Sobre as Oferendas foi atualizada mudando a linguagem para significar o momento como Apresentação das Oferendas, evitando as palavras que de certo modo antecipavam o verdadeiro Ofertório da Missa; do embolismo do Prefácio foi retirada a palavra differéntia porque, nesse caso, é sinonimo de discretiónis.

 

In Festo Sanctissimae Trinitatis –

Missae Votivae. Feria II. Missa de Sanctissima Trinitate

Alcuínus – MR 1474/1570/1962

Domenica I post Penteconsten Sanctissimae Trinitatis. Sollemnitas

MR 1970/1975/2008

 

Primeiro domingo depois de Pentecostes

Santíssima Trindade

Solenidade MRP[11]

Sobre as Oferendas Sanctífica, quǽsumus, Dómine, Deus noster, per tui sancti nóminis invocatiónem, hujus oblatiónis hóstiam: et per eam nosmetípsos tibi pérfice munus ætérnum. Per Dóminum nostrum.

 

Sanctífica, quæsumus, Dómine Deus noster, per tui nóminis invocatiónem, hæc múnera nostræ servitútis, et per ea nosmetípsos tibi pérfice munus ætérnum. Per Christum.

 

Senhor nosso Deus, pela invocação do vosso nome, santificai as oferendas de vossos servos e servas, fazendo de nós uma oferenda eterna. Por Cristo, nosso Senhor.
Prefácio Qui cum unigénito Fílio tuo et Spíritu Sancto unus es Deus, unus es Dóminus: non in unius singularitáte persónæ, sed in uníus Trinitáte substántiæ. Quod enim de tua glória, revelánte te, crédimus, hoc de Fílio tuo, hoc de Spíritu Sancto sine differéntia discretiónis sentímus. Ut in confessióne veræ sempiternǽque Deitátis, et in persónis propríetas, et in esséntia únitas, et in majestáte adorétur æquálitas.

 

Qui cum Unigénito Fílio tuo et Spíritu Sancto unus es Deus, unus es Dóminus: non in uníus singularitáte persónæ, sed in uníus Trinitáte substántiæ. Quod enim de tua glória, revelánte te, crédimus, hoc de Fílio tuo, hoc de Spíritu Sancto, sine discretióne sentímus. Ut, in confessióne veræ sempiternaeque Deitátis, et in persónis propríetas, et in esséntia únitas, et in maiestáte adorétur æquálitas. Com vosso Filho único e o Espírito Santo, sois um só Deus e um só Senhor. Não uma única pessoa, mas três pessoas num só Deus. Tudo o que revelastes e nós cremos a respeito de vossa glória atribuímos igualmente ao Filho e ao Espírito Santo. E, proclamando que sois o Deus eterno e verdadeiro, adoramos cada uma das três pessoas, na mesma natureza e igual majestade.
Depois da Comunhão Profíciat nobis ad salútem córporis et ánimæ, Dómine, Deus noster, hujus sacraménti suscéptio: et sempitérnæ sanctæ Trinitátis ejusdémque indivíduæ Unitátis conféssio. Per Dóminum.

 

Profíciat nobis ad salútem córporis et ánimæ, Dómine, Deus noster, hujus sacraménti suscéptio: et sempitérnæ sanctæ Trinitátis ejusdémque indivíduæ Unitátis conféssio. Per Dóminum. Possa valer-nos, Senhor nosso Deus, a comunhão no vosso sacramento, ao proclamarmos nossa fé na Trindade eterna e santa, e na sua indivisível Unidade. Por Cristo, nosso Senhor.

 

A Coleta é a oração que “sofreu” maiores mudanças/atualizações. Desapareceu a parte da petição, um tanto negativa e polêmica (ut, ejúsdem fídei firmitáte, ab ómnibus semper muniámur advérsis). A primeira parte da “nova” oração resume com precisão o papel das Pessoas divinas na história da salvação (Deus Pater, qui, Verbum veritátis et Spíritum sanctificatiónis mittens in mundum, admirábile mystérium tuum homínibus declárasti)[12]:

Omnípotens sempitérne Deus, qui dedísti fámulis tuis in confessióne veræ fídei, ætérnæ Trinitátis glóriam agnóscere, et in poténtia majestátis adoráre Unitátem: quǽsumus; ut, ejúsdem fídei firmitáte, ab ómnibus semper muniámur advérsis. Per Dóminum nostrum.

Deus Pater, qui, Verbum veritátis et Spíritum sanctificatiónis mittens in mundum, admirábile mystérium tuum homínibus declárasti, da nobis, in confessióne veræ fídei, ætérnæ glóriam Trinitátis agnóscere, et Unitátem adoráre in poténtia maiestátis. Per Dóminum.

Ó Deus, nosso Pai, enviando ao mundo a Palavra da verdade e o Espírito santificador, revelastes o vosso inefável mistério. Fazei que, professando a verdadeira fé, reconheçamos a glória da Trindade e adoremos a Unidade onipotente. Por nosso Senhor.

A parte “nova” da oração condensa as referências bíblicas:

Ef. 1,13 in quo et vos cum audissetis verbum veritatis, evangelium salutis vestrae, in quo et  credentes signati estis Spiritu promissionis Sancto,
 

Em quem também vós estais, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação; e, tendo nele também crido, fostes selados com o Espírito Santo da promessa,

 

Rom 1,4 qui constitutus est Filius Dei in virtute secundum Spiritum sanctificationis ex resurrectione mortuorum, Iesu Christo Domino nostro,
 

Declarado Filho de Deus em poder, segundo o Espírito santificador, pela ressurreição dentre os mortos, Jesus Cristo, nosso Senhor,

 

Jo 3,17 Non enim misit Deus Filium in mundum, ut iudicet mundum, sed ut salvetur mundus per ipsum.
 

Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele.

 

Breves conclusões

* A Solenidade da Santíssima Trindade entrou efetivamente no Calendário Litúrgico da Igreja do Ocidente somente no II milênio, e é até agora desconhecida pela Igreja do Oriente, pelas mesmas razões pelas quais, nos séculos XI e XII foi rejeitada pela Igreja Romana.

* O formulário para a Missa não é de tradição romana, mas galicana. O louvor à Trindade pelas maravilhas operadas na história da salvação é praticamente ofuscado pela linguagem técnica, quase escolástica, que gravita em torno do mistério do Deus uno e trino[13].

* O fato do Missal Romano restaurado pelo Concílio Vaticano II não criar um novo formulário para essa Solenidade, demonstra que ele se coloca em linha de continuidade com a tradição precedente, que atravessou os séculos.

 

Dom Jerônimo Pereira Silva, OSB.
Doutor em Sagrada Liturgia.
Membro do Centro de Liturgia Dom Clemente Isnard.


[1] Cf. L. Baudoin, «L’origine de la fête de la Trinité», QLP 2 (1912) 380-383; F. Cabrol, «Le culte de la Trinité dans la liturgie et l’institution de la fête de la Trinité», EL 45 (1931) 270-278; V. Cusumano, «Trinità», in Enciclopedia Cattolica, XII, ed. Ente per l’enciclopedia cattolica e per il libro cattolico, Città del Vaticano 1954, 541-544.

[2] Cf. M. Righetti, Storia Liturgica, II, L’Anno liturgico. Il Breviario, Ancora, Milano 1955, 24-247.

[3] E. Duffy, Santos e Pecadores: história dos Papas, Cosac; Naify, São Paulo 1998.

[4] E. J. P. Van Dijk – J. H. Walker, The Ordinal of the Papal Court from Innocent III to Boniface VIII and Related Documents, The University Press, Fribourg 1975, 569.

[5] Cf. J. Deshusses, Les Messes d’Alcuin, Sonderdruck aus Archiv für Liturgiewissenschaft, Band XIV, Verlag Friedrich Pustet Regensbur 1972, 16-17. Alcuíno organizou/compôs um formulário de missa (Collecta, Super Oblata, Ad Complendum, Super Populum. Algumas com Prefácio) para cada dia da semana.

[6] Sacramentarium Fuldense saeculi X, ed. G. Richter – A. Schönfelder, Fulda, Druck der Fuldaer Acktendruckerei 1912.

[7] Liber sacramentorum paduensis (Padova, Biblioteca capitolare, cod. D 47), ed. A Catella – F. Dell’Oro – A. Martini, CLV – Ed. Liturgiche, Roma 2005, 491.

[8] Missalis Romani editio princeps Mediolani anno 1474 prelis mandata: reimpressio introductione aliisque elementis aucta, curantibus Cuthbert Johnson osb; Anthony Ward sm, ed., Cuthbert Johnson – Anthony Ward, CLV-Edizioni Liturgiche, Roma 1996.

[9] Missale romanum. Editio princeps (1570), ed. M. Sodi – A. M. Triacca, LEV, Città del Vaticano 1998; Missale Romanum, editio typica 1962, ed. M. Sodi – A. Toniolo, LEV, Città del Vaticano 2007.

[10] Missale Romanum ex decreto Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticani II instauratum auctoritate Pauli PP. VI promulgatum, editio typica, Typis Vaticanis, Città del Vaticano 1970; Missale Romanum ex decreto Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticani II instauratum auctoritate Pauli PP. VI promulgatum, Editio typica altera, Typis Vaticanis, Città del Vaticano 1975; Missale Romanum ex decreto Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticani II instauratum auctoritate Pauli PP. VI promulgatum Ioannis Pauli PP. II cura recogitum, editio typica tertia, Typis Vaticanis, Città del Vaticano 2008.

[11] Missal Romano, restaurado por decreto do sagrado Concílio Ecumênico Vaticano Segundo e promulgado pela autoridade do papa Paulo VI, tradução portuguesa da II edição típica para o Brasil realizada e publicada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica, Paulus, São Paulo 19922.

[12] Cf. M. Augé, «Le collette del proprio del tempo», EL 84 (1970) 296.

[13] Cf. A. Matias, «Le feste del Signore, della Madre di Dio e dei Santi», Anàmnesis, VI, L’Anno Liturgico. Storia, teologia e celebrazione, ed. A. J. Chuppungco, Marietti, Genova 1988, 224-225.

 

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