Resultado de imagem para venerdi santoMarko I. Rupnik, 2009 (Paróquia Corpus Domini, Bolonha).

Com a simplicidade celebrativa dos sinais externos de sobriedade e reserva simbólica da sexta-feira da paixão: o altar despojado (nudum), sem cruz, castiçais ou toalha, prostração e silêncio, tem início a Celebração da Paixão do Senhor. É a Páscoa da cruz!

Existe um curioso relato que nos reporta às festas pascais da Jerusalém do IV século e sua relação com a atual celebração deste dia: a peregrinação de uma nobre mulher, Egéria/Aetheria. Ela vai em peregrinação aos lugares sagrados e escreve uma espécie de diário. É mais que uma fotografia. É um testemunho de como os peregrinos e fiéis celebravam esses dias altos de nossa fé. A força da ação ritual é determinante… É notável nessa acessível literatura, que os elementos simbólicos são os mesmos de hoje, como também, grosso modo, a performance da celebração. Tempo e lugar favorecem os elementos de transcendência, impelem a uma gestualidade que suporta e mantém o rito tornando-o envolvente: o santo lenho como elemento visual principal se torna o símbolo que rege e sintoniza a ação que, junto com as leituras e o canto, produzem a procissão, a genuflexão, o beijo da cruz. Vamos repassar cada parte.

Numa atmosfera de silêncio orante, a primeira parte da celebração, a Liturgia da Palavra, oferece a leitura do IV Cântico do servo (Is 52, 13-53,12) que com o Salmo 30/31 e a Carta aos Hebreus, apresentam o cumprimento total da obediência de Cristo: “homem coberto de dores, cheio de sofrimentos” (Is 53,3),  “vaso espedaçado…” (Sl 30, 13), que “aprendeu o que significa a obediência a Deus por aquilo que ele sofreu” (Hb 4,8). A leitura da paixão do Senhor segundo João é proclamada sem a tradicional saudação, nem sinal da cruz sobre o livro, nem incenso ou velas. O centro do anúncio é acolhido com o significativo gesto de ajoelhar-se. À proclamação segue-se a oração universal, segundo uma antiga ordem já indicada por Justino no II século[1].

A adoração da Santa Cruz, segunda parte da celebração, introduz, nas duas formas propostas, um elemento visual central: uma única Cruz apresentada à assembleia[2] para adoração. Aqui a liturgia se expressa com elementos próprios da piedade cristã. Neste momento a força do rito é conjugada à palavra cantada e ao gesto de adoração, gerando um evento que envolve assembleia que celebra. O Missal Romano traz as diversas possibilidades de cantos para esse momento: a antífona: Adoramos, Senhor o vosso madeiro (crucem tuam), Povo meu (popule meus): canto acompanhado com tradicional Trisagion: Deus santo, forte e imortal, que na bela versão brasileira do P. Joaquim Ximenes Coutinho, em tom menor, constitui a primeira versão em vernáculo para o Brasil desta forma musical, e Cruz fiel (crux fidelis) ou outros cantos apropriados (congrui).

A comunhão eucarística deste dia, razão principal da transladação do Santíssimo no dia anterior, é a terceira parte da celebração. Já na reforma de Pio XII, em 1955, foi estabelecida a comunhão a todos os fieis, diferente da prática precedentemente registrada.

Os textos eucológicos, os textos bíblicos e a ação ritual constituem um conjunto celebrativo proporcionalmente disposto dentro do Tríduo Pascal. A Igreja não dispensa os elementos da piedade popular neste dia, são abundantes em nossas tradições, elas devem ser ordenadas, estar de acordo e derivarem da liturgia, se de fato quiserem manifestar claramente o dado da fé (cf. SC 13).

Na beleza austera da celebração deste dia, pedimos que nos venha o perdão, nos seja dado consolo, cresça a fé verdadeira e a redenção se confirme (Oração sobre o povo), pois, não existe nenhuma morte ou dor que não tenha já sido por ele visitada!

Em um instante, a aparente contradição dos elementos visuais deste dia, dá voz à fé que reconhece no Lenho da Cruz, já o sinal da vitória da Ressurreição. É um salto de qualidade teologal que somente a liturgia é capaz de fazer. Substituindo qualquer palavra ou discurso humano, a liturgia dá vez a um conjunto de gestos silenciosos e profundos que proclamam com eloquência a delicada verdade de nossa fé: do lenho da Cruz pendeu a salvação do mundo.

[1] Cf. Bergamini, Augusto. Triduo Pasquale. In: Domenico, Sartore; Triacca, Achille M. (Orgs.). Dicionário de Liturgia. São Paulo: Paulus, 1992. p. 1200.

[2] Missal Romano. Sexta-feira santa. Celebração da Paixão do Senhor, n. 19, p. 261.

Francisco Inácio Vieira Junior é presbítero salesiano, mestre em Sagrada
Liturgia e membro do Centro de Liturgia Dom Clemente Isnard.