No tempo da Quaresma nos colocamos em marcha ao ouvirmos a convocação da Igreja para vivermos um tempo de penitência e austeridade, de conversão pessoal e social, especialmente pelo jejum, a caridade e a oração. O objetivo é chegarmos às festas pascais, centralidade da nossa fé, com o coração enternecido e liberto das fragilidades do pecado que corrompe.
Os cinco domingos quaresmais nos apresentam um itinerário pedagógico-espiritual privilegiado, ao mesmo tempo em que renova nossa fé e nossos compromissos batismais. Os textos sagrados proclamados nessas celebrações manifestam a cada ciclo essas características.
Não é sem razão que o canto e a música do tempo quaresmal participam desta natureza espiritual devido sua característica sempre ligada à Sagrada Escritura e seu forte caráter simbólico-gestual, pois “a música na liturgia tem função privilegiada quando ela, ligada intimamente à ação litúrgica, exprime mais suavemente a oração, favorece a unanimidade e dá maior solenidade aos ritos sagrados” (Sacrosanctum concilium nº 112).
A música litúrgica é o sinal sensível mais eloquente da liturgia. Bebendo das fontes da Sagrada Escritura, canto e música revestidos de sua característica poética, litúrgica, teológica e pastoral, possuem capacidades de realizar o que significam quando se colocam ao serviço da liturgia, solenizando-a, e santificando a assembleia celebrante, pois é capaz de exprimir a alegria do coração que vibra (SC 7, 112, 112; Dies Domini, João Paulo II).
No tempo da Quaresma, o canto litúrgico se reveste do luto, da ausência do “glória” e do “aleluia”, um canto sem flores e sem as vestes da alegria, um canto “das profundezas do abismo”, em que nos colocaram nossos pecados (Sl 130); um canto de quem suplica a misericórdia do Senhor (Sl 51,3).[1]
Por meio do canto litúrgico, a Quaresma então se traduz num itinerário em que o “errante” se volta para Deus, escutando sua Palavra, abrindo o coração e deixando-se guiar por ele. Hoje, somos nós esses “errantes”, que queremos nos voltar a Deus, escutá-lo, e não mais proceder como assim o fizeram nossos antepassados. (cf. Sl 95[94],7-10). A estrada do Êxodo citada no Prefácio V da Quaresma, pela qual tomamos consciência de que somos povo da aliança, é o sinal de nossa caminhada quaresmal.
Neste tempo em que se reúnem catecúmenos e fiéis na celebração do mistério pascal, cantamos a intensa preparação para a Páscoa do Senhor. O canto da assembleia reunida é a expressão do povo de batizados que, subindo ao monte santo, expressa através da penitência, do jejum e da caridade sua índole, sempre em vista do ardente desejo ao crescimento da vida espiritual.
Este caminho penitencial é marcado, sobretudo, pela reconciliação com as pessoas, com o mundo, com o cosmos, sinal de que a Páscoa de Cristo é meio que “antecipada” nas atitudes que contribuem para um mundo mais humano, e encontra em nossas relações sociais ambiente próprio para fazermos valer o combustível da fé que nos congrega sobre o mesmo chão, a terra-mãe, na qual seremos entregues, tornando-nos pó e nos igualando a ela.
Na catequese propiciada pela explanação da Palavra, pelo canto da assembleia na celebração eucarística e nas celebrações penitenciais, são acentuadas as consequências sociais do pecado e a natureza genuína da penitência, com a qual se detesta o pecado enquanto ofensa a Deus. O canto litúrgico se reveste desta força catequética, sem ser catequético mas é incorporado ao rito tornando-se elemento próprio da liturgia.
Portanto, o canto quaresmal reveste-se do sentido profundo da dor em que nos colocou o pecado do mundo. A raiz social do pecado atinge dolorosamente homens e mulheres que continuamente prolongam seus sofrimentos associando-os à paixão de Cristo. Para nos ajudar a refletir sobre o pecado social em nossas realidades, a própria CNBB sugere como caminho penitencial a reflexão anual trazida pelo tema da Campanha da Fraternidade, e o seu Hino, cantado com vigor nas reuniões e encontros de grupos e comunidades, se torna uma espécie de “força” para que nossa atuação se transforme em frutos pascais ao serviço de uma sociedade sempre fragilizada pelo peso da opressão social em que os mais atingidos são os pobres.
Da força de nossas liturgias quaresmais o canto penitencial e de conversão assume gritos que emanam das profundezas das realidades em que nos colocaram nossos pecados; é um grito de “Tende piedade de nós!” daqueles e daquelas que imploram a misericórdia de Deus e suplicam para si a conversão do coração.
Na sutil arte poética dos textos deste tempo quaresmal devem ser destacados a virtude do seguimento de Jesus e a prática penitencial que coincide com a conversão do coração pecador (rasgar as vestes, coração de carne e não de pedra, voltar-se a Deus…), atitudes específicas do tempo. Se o nosso canto antever essas realidades, e se o aplicarmos às circunstâncias e condições próprias dos dias de hoje, sempre mais alcançaremos o sentido espiritual pascal segundo o qual deseja a Igreja ao suplicar para si mesma e para o mundo um espírito evangélico que orienta nossos passos para o bem dos irmãos e das irmãs.
[1] Veloso, Reginaldo. Introdução ao Hinário Litúrgico da CNBB, Volume II – Ciclo da Páscoa, São Paulo: Paulus, p. 7.
O autor, Eurivaldo Silva Ferreira, é mestre em Teologia pela PUC-SP e músico. Membro do International Study Group for Liturgical Music (Universa Laus), membro da Equipe de Reflexão de Música Litúrgica da CNBB e membro da Celebra, rede de animação litúrgica.
Obs.: Este artigo foi publicado simultaneamente no Blog do autor.