No domingo sucessivo ao dia 29 de junho, a Igreja no Brasil celebra “o martírio dos apóstolos Pedro e Paulo tornou sagrado para nós este dia”, como escreveu Santo Agostinho[1]. E é verdade. Este dia para nós é duplamente sagrado. Sagrado em primeiro lugar porque é o domingo, o dia do Senhor, o “dia em que celebramos a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte”, dia em que ele “arrombou portas de bronze e quebrou trancas de ferro das prisões” arrancando-nos “das trevas pavorosas e despedaçando nossas correntes, nossos grilhões”[2]. Este dia é ainda sagrado pela dádiva destas duas grandes colunas da Igreja, Pedro e Paulo, que com as suas vidas, combatendo o bom combate, guardaram a fé que nos salva, e que, com a celebração da eucaristia, publicamente confessamos.

A solenidade dos Apóstolos Pedro e Paulo se insere no hall daquelas festas que são muito caras a todo o povo brasileiro. Festas que celebram com grande alegria “gigantes da fé” com os quais o nosso povo se identifica tanto: Santo Antônio e São João.

Não só, por determinação da VII Assembleia da CNBB, em todas as igrejas e oratórios espalhados pelos quatro cantos do Brasil, comemora-se, concomitantemente com a Solenidade de São Pedro e São Paulo, o dia do Papa. Momento em que, com as nossas orações, voltamos nossos afetos de amor e veneração, respeito e obediência, àquele que, sucedendo São Pedro na Sé de Roma, tem o ministério de confirmar os seus irmãos na fé. Tal ministério nasce exatamente da palavra que se escuta no Evangelho desta solenidade.

Abrindo o Lecionário

Os textos da Liturgia da Palavra desta Solenidade não têm como objetivo narrar feitos gloriosos das Testemunhas de Cristo, mas como o Senhor faz triunfar aqueles que o querem sempre ao seu lado e que não se perdem em especulações, mas sabem com clareza do “Pai que está no céu”.

A primeira leitura (At 12,1-11) fala da Igreja nascente que vê seus “membros” padecendo a tortura e a espada e apresenta, passando pela cruz, os três discípulos que experimentaram antecipadamente sobre o Tabor o brilho da glória que sucede à morte injusta dos justos: Pedro, Tiago e João. Pedro está preso nos dias dos “Pães ázimos” (como Jesus – cf. Lc 22,21), dias da páscoa judaica e dias em que a Igreja nascente, provavelmente, também celebrava a memória anual da Páscoa de Cristo[3]. O texto é eminentemente pascal: Pedro está aferrolhado e vigiado por guardas, como Jesus estava no sepulcro (cf. Mt 27,62-66), dormia e foi acordado por um anjo. Os termos “dormir” e “acordar” no Novo Testamento são usados para indicar a morte e a ressurreição. O texto se conclui com uma frase que se liga perfeitamente ao Salmo Responsorial (Sl 33 – Agora sei, de fato, que o Senhor enviou o seu anjo para me libertar), também esse pleno de “tonalidades” e “cores pascais”: “De todos os temores me livrou o Senhor Deus”. Ele é o salmo do Servo de Javé que fez a experiência de não ser abandonado na mansão dos mortos (At 2,24). O Salmista é o Senhor ressuscitado. É também o salmo das suas testemunhas que “todas as vezes que o buscaram, ele os ouviu e de todo os temores os livrou”. Feita sua experiência pascal, Pedro, no entardecer do seu ministério repetirá a palavra do salmista dizendo já ter experimentado, provado e visto a bondade do Senhor (cf. 1 Pd 2,2).

Na segunda leitura (2Tm 4,6-8.17-18) se escuta “o testamento de Paulo”, prestes a “ser derramado em sacrificio”, às portas do “momento da sua partida”. Paulo não se vitimiza, sabe que a única vítima é Jesus Cristo. Sabe também que para receber a coroa de justiça, das mãos do justo juiz, para ele reservada, é preciso passar pelo processo da kènosis, pelo qual passou Jesus. Assim como toda a vida de Jesus foi um percurso “kenótico”, toda a vida de Paulo foi uma experiência de combate do bom combate, de guardar a fé e de completar a corrida do anúncio do Evangelho. Também Paulo “reproduz” o “Salmista”: “Todas as vezes que o busquei, ele me ouviu”, porque “o Senhor esteve ao meu lado e me deu forças”. E mais, “O Senhor me libertou de toda angústia”, “fui libertado da boca do leão”. A glória para Paulo reside no fato de ter conquistado tantos fiéis para Cristo, ele que também foi alcançado por Cristo (Fl 3,12). Por isso, perto de “completar sua corrida”, afirmou: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. Minha vida presente na carne, vivo-a na fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gal 2,20).

Esta fé no Filho de Deus, pela qual Paulo vive, é a mesma professada por Pedro no Evangelho (Mt 16,13-19) que se abre com uma pergunta, da parte de Jesus, “capiciosa” e cheia de trocadilhos: “Quem dizem os homens (com “h” minúsculo) quem é o Filho do Homem (com “H” maiúsculo)? Para Santo Ambrósio “a opinião da multidão também não é sem importância” porque ela é baseada não na revelação, mas na expectativa gerada pelo “extra-ordinário”, o que resulta uma imagem limitada e limitante de Jesus e de sua missão: ele é “algum dos profetas”. O segundo ponto de interrogação é mais direto e íntimo: “E vós, quem dizeis que eu sou?”. A resposta de Pedro não se baseia no “extra-ordinário humano”, mas naquilo que vem do alto: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”. Também Jesus revela a Pedro coisas que vem do alto: a “construção” de um novo povo (Igreja) que tem como fundamento a Pedra da profissão de fé de Pedro. Então, porque Pedro se tornou uma “porta da fé” Jesus lhe confia “chaves do Reino dos Céus”.

 

Atualizando a Palavra

Numa perspectiva de fé nos perguntamos: o que confiou Jesus a Pedro quando lhe entregou “as chaves do Reino dos céus”? Nos responde São João Crisóstomo: “O que pertence propriamente a Deus, como apagar os pecados, garantir a resistência da Igreja, malgrado as ondas com que será batida, comunicar a um pobre pecador uma firmeza superior à do mais sólido rochedo, a despeito dos ataques da terra inteira. […] Confia a um homem mortal todo o poder dos céus, do qual dá as chaves, espalha sua Igreja sobre a superfície do globo; e a estabelece mais solidamente que os céus; porque disse: ‘os céus e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão’ (Mt 24,35)”[4]. Pastoralmente falando, dizemos que Jesus conferiu a Pedro o “ministério/serviço” de conduzir o rebanho de Deus (Sl 94,7) rumo à porta que é o próprio Cristo (Jo 10,7). Este ofício petrino “e dos outros Apóstolos faz parte dos fundamentos da Igreja e é continuado pelos Bispos sob o primado do Papa”[5].

Pastorear o rebanho do Senhor é um empenho próprio daqueles que foram ordenados para esse fim, mas o dever de zelar por esse rebanho, não seria de todo batizado? Depois do Concílio Vaticano II ouvimos falar do “protagonismo dos leigos”, preferimos usar o termo “comprometimento do batizado com a causa do Reino”, evidenciando que a construção do Reino, o anúncio “integral da mensagem”, a “peleja do bom combate”, o “guardar a fé”, faz com que homens e mulheres, de todas as raças e idades se identifiquem com a missão do anúncio do Evangelho. Pedro e Paulo nos ensinam que o importante é levar a missão do anúncio até as últimas consequências e que, quando pensarmos que é chegado o termo final, certamente “o anjo do Senhor virá acampar ao redor dos que o temem e os salvará”. A Solenidade desses santos é de fato um belo convite a toda a Igreja: “Provai e vede quão suave é o Senhor”.

 

Pão da Palavra e Pão eucarístico

Os Apóstolos que celebramos nesta Solenidade, são os nossos pais na fé. Eles nos transmitiram a fé como dom, como primícias (coleta). Não só a fé a nível de conhecimento, de verbalização, mas acima de tudo nos transmitiram uma fé a nível de celebração. A liturgia não é outra coisa senão a fé celebrada, a fé colocada em ação, e a Igreja reconhece nessa dimensão da fé “o cume e a fonte” de toda o seu existir[6]. É precisamente para esse momento que se dirige toda a atividade pastoral da Igreja e, ao mesmo tempo, é desse momento que a Igreja sorve toda a sua vitalidade.

É a celebração do Mistério Pascal de Cristo, do qual fazemos memória, e do qual participamos em plenitude quando comemos do Corpo e bebemos do Sangue do Senhor, ao nos aproximarmos do altar, que nos impulsionará para sermos testemunhas do Ressuscitado. A eucaristia que recebemos é realmente aquele “pão que alimenta e que dá vida”, aquele “vinho que nos salva e dá coragem” e que desperta em nós a certeza de “quão suave é o Senhor”, e nos capacita a professar com Pedro: “Agora eu sei, de fato, que o Senhor enviou o seu anjo para ‘nos’ libertar”, e com Paulo: “O Senhor esteve sempre a meu lado e me deu forças… e eu fui libertado da boca do leão”. Por fim a eucaristia, nos fará “viver de tal modo na Igreja”, perseverando “na doutrina dos Apóstolos” e enraizados no amor do Senhor, que nos tornaremos “um só coração e uma só alma” (Depois da comunhão).

Dom Jerônimo Pereira Silva, osb.
Doutor em Sagrada Liturgia.
Membro do Centro de Liturgia Dom Clemente Isnard

 


1 AGOSTINHO DE HIPONA. Discurso 295, ed. J. P. Migni (PL 38), Paris 1841, 1348.
2 Cf. Sl 106,14.16.
3 Cf. M. AUGÉ, L’anno liturgico, è Cristo stesso presente nella sua chiesa. LEV, Città del Vaticano 2009, 108-109.
4 JOÃO CRISÓSTOMO. Homilia sobre São Mateus, 54,1-2, in PG 49, 1145.
5 CIC 881.
6 Cf. SC 10 e 14.

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