O CRISTO, NOSSA PÁSCOA, FOI IMOLADO! CELEBREMOS A FESTA[1]

Festa, uma tentativa rápida de definição

Uma festa é sempre uma solenidade. Uma solenidade, por sua vez, é uma ocorrência rítmica, uma sucessão ordenada em intervalos regulares de tempo, com a qual um fenômeno ocorre, um organismo se desenvolve. A solenidade diz respeito diretamente, e antes de tudo, ao homem, depois à natureza, aos lugares, eventos importantes, religiosos ou não.

A festa, por ser uma ocorrência que obedece a um ritmo temporal articulado entre tempo livre e tempo ocupado, tem haver com as diferentes fases da vida e com os eventos que sinalizam a história individual e coletiva. Tem sempre haver com o entrar em relacionamento e com a capacidade própria do homem re-cor-dar.

 

A festa para homem e homem para a festa

Para Durkheim e seus discípulos, a festa tem, acima de tudo, uma função libertadora e recreativa, propiciada pela amalgamação maciça e produtora de exultação. Caracteriza-se, sobretudo, como celebração da vida e como uma das atividades mais expressivas dos homens, entendida como uma identidade primeiramente reflexiva e posteriormente comunitária, centrífuga e centrípeta, ambos ao mesmo tempo.

Esse conceito nos invoca imediatamente o binômio festa / identidade. O segundo termo precede e acompanha o primeiro, que se torna o resultado, o fim e o princípio. Em outras palavras, o “identificar-se” é mais que suficiente para fazer uma festa, e a festa se torna a fonte de uma identidade que vai além da própria festa. Esse processo está enraizado na dimensão simbólica do homem, cuja auto-realização ou existência pessoal e comunitária, se torna possível somente através da mediação.

A festa tem a capacidade de despertar a pessoa humana, antes ou depois, para uma realidade que a supera (dimensão mística da festa), a completa (dimensão soterologica da festa) e a liberta da loucura da “solidão habitada”, típica do mundo contemporâneo, onde cada vez mais o ser humano é identificado como número, tipo e massa desconhecidos[2].

 

O tempo e a festa

Esse antes e esse depois faz com que a festa se torne uma ruptura mediadora no tempo ordinário, que geralmente é anódino[3]. A festa se torna, então, suspensão, transgressão espaço-temporal. Sinaliza a passagem dos ritmos cotidianos para uma livre explosão de vida. A festa como objeto de diferenciação está presente em todas as culturas como forma de distinguir o sagrado do profano, o trabalho do tempo livre. Ela também funciona como uma reprodução simbólica da fadiga e do relaxamento, da tensão e da distensão fisiológica, próprias da respiração.

Por outro lado, a festa faz o ser humano beber nas suas fontes, isto é, favorece-lhe a oportunidade de retornar periodicamente aos tempos das suas origens[4]; assim as festas são periódicas; toda semana tem um domingo, todo mês uma ocorrência para se co-memorar, todo ano um aniversário de alguém, de alguma coisa, de algum evento. Assim, as festas acontecem com caráter semanal, mensal e anual; sinalizam as décadas e os milênios, adaptando-se, obviamente, à medida temporal do homem.

Em todas as culturas, a relação entre natureza, tempo e celebração festiva é quase que dada por certo. O verão, o outono, o inverno e a primavera revestem a  criação com suas roupas, cores e perfumes próprios e impelem a pessoa humana a entrar em simbiose, colaboração, cooperação, fusão, inter-relação, compreensão, relacionamento, ligação, vínculo com tudo o que é específico de cada estação. A chegada de cada um das estações sinaliza um novo tempo com uma forma particular de celebração, especialmente quando pensamos o tempo como o tempo de semear e de colher o feijão, o trigo, o milho, a uva etc.

Podemos finalmente dizer que a festa é sempre ritual, simbólica e, como tal, obedece aos processos rituais de separação, suspensão e reintegração. A festa pode produzir interpretações do cotidiano, críticas e sugerir reformulações, conscientes ou não, do mundo circundante. Devido ao seu caráter de reiteração, às vezes de tom profundamente nostálgico, a festa pode atuar como um espaço para aprender códigos sociais e para a produção de novas informações e perspectivas.

Atrair e integrar os participantes, sempre foi uma tarefa específica da festa. Ela envolve pobres e ricos, está presente em todas as culturas e etnias, pode ser sagrada ou profana, ou ambas ao mesmo tempo ou em tempos sucessivo. É uma transição da eficiência funcional para a esfera da gratuidade[5].

 

A festa cristã

Ao pensarmos sobre a questão o que é a festa autenticamente cristã (?) podemos ir imediatamente ao ponto: a festa cristã é o próprio Cristo, o Cristo obediente ao projeto do Pai. A festa cristã é o viver histórico-salvífico de Cristo. «Uma festa cristã pressupõe, acima de tudo, um fato salvífico passado, que consagrou um determinado dia e que a celebração litúrgica o faz reviver. É por isso que a Igreja nunca celebrou a “parusia”, mas apenas os mistérios históricos de Cristo e de seus santos. Esses fatos são “salvíficos” no sentido forte da palavra, isto é, eles são a causa da salvação, razão objetiva para a santificação, e não apenas “benefícios”, de acordo com o sentido enfraquecido que o termo tem no uso corrente. Finalmente esses fatos são fontes de alegria sobrenatural»[6].

Cristo é o cumprimento de todas as promessas feitas aos pais da Primeira Aliança. Nele, através do seu livre “sim” à vontade do Pai, a humanidade foi elevada à categoria de povo de Deus: a festa de Cristo, ou a festa que Cristo celebrou entre os homens e mulheres, era fidelidade à vontade do Pai[7].

 

Celebremos, pois, a festa

Essa festa/obediência/fidelidade encontra o seu ponto culminante na Páscoa que Cristo celebrou com os seus e que o faz ainda hoje per ritus et preces na liturgia da Igreja. A Páscoa obediente de Cristo não é apenas um modelo para os cristãos (dimensão moral), uma forma de vida (lex vivendi), mas “a” sua festa: O Cristo, nossa Páscoa, foi imolado! Celebremos a festa … (1Cor 5,7-8).

A “festa Cristo” obedece a todas as regras da festa do ser humano, por causa do princípio fundamental da Encarnação, porém a aperfeiçoa. Aqui, a alegria das pessoas se torna, em Cristo, um eco no mundo da alegria de Deus.

A festa da “Festa Cristo” por excelência é a solenidade da Páscoa, a ocorrência anual, o centro de toda a vida cristã. «Mais uma vez é Páscoa e alegria, meus irmãos, escreve Santo Atanásio, mais uma vez o Senhor nos conduziu a este tempo para que, alimentados, como de costume, com sua palavra, celebremos a festa como convém. Aguardamos com alegria esta celebração celestial junto com os santos, pois eles já preanunciaram esta solenidade e nos precederam pelo exemplo de sua vida vivida em Cristo»[8].

Para os Padres da Igreja, a Páscoa não exclui ninguém, nem mesmo os pecadores, porque neste dia o perdão foi derramado sobre a terra (Maximo de Turin, Ser. 53); a alegria da Igreja reunida é acompanhada pela exultação dos anjos (J. Crisóstomo, Hom. Pascal, 3); toda a criação exulta, porque esta festa é a festa do Adão reconciliado com a criação (Zenão de Verona).

 

Este é o dia que o Senhor fez

Da Páscoa anual nasce a Páscoa semanal, o domingo. Não se trata de uma Páscoa reduzida, em miniatura, mas o domingo é, precisamente, aquele dia feito pelo Senhor, por isso somos convidados pelo salmista: “alegremo-nos e regozijemo-nos nele” (Sl 117,24). O domingo torna-se o coração da semana e do ano litúrgico, dele e para ele se direcionam todos os tempos. O domingo é o próprio Cristo ressuscitado, primeiro e último, primeiro e oitavo, Alfa e Ômega. É o dia símbolo da fé cristã[9].

A celebração dominical torna tangível o princípio de todas as coisas e nos permite, por ritos e preces, ver e experimentar a transição do nada ao ser, das trevas à luz, do caos ao cosmos, à beleza[10]. Também nos faz fazer a experimentar da transição da escravidão para a liberdade, faz de nós todos estrangeiros caminhantes para a terra natal. O domingo é o dia da libertação[11].

Ao dia feito pelo Senhor estão ligadas todas as festas cristãs. Os Padres da Igreja acreditavam que neste dia se deu a Encarnação para a redenção do homem. Para eles este é o dia epifânico por excelência; nesse dia Cristo subiu ao céu (a Ascensão), o Espírito Santo veio (Pentecostes). Esse é o dia dos sacramentos, nele lembram-se dos mártires, da Mãe de Deus. O domingo é, ainda hoje, um dia para ser redescoberto[12].

 

A comunidade paroquial, lugar de festa

Surge uma pergunta: de que maneira a nossa paróquia é um lugar/espaço ideal para a festa? O primeiro dado que poderia servir como resposta seria o da participação ativa in primis nos sacramentos, isto é, a nossa paróquia se tornará realmente lugar da celebração cristã quando ela descobrir a dimensão festiva e comunitária dos sacramentos, celebrados não só efetivamente, mas, antes de tudo, simbolicamente na própria paróquia, que desperta não apenas o sentido do pertencer, mas também da identidade.

Ao adotar este princípio, é conveniente assumir os dias de reunião como dias de encontros solidários, uma solidariedade nascida da própria solidariedade de Deus para conosco e que se estende de nós para os nossos irmãos[13]. Os dias de festa paroquial são chamados a se tornarem dias de festa do Senhor, da Igreja, da família, do ser humano, da esperança, do canto, da dança, da mesa posta, do diálogo, do repouso, a alegria.

 

Dom Jerônimo Pereira Silva, OSB
Monge do Mosteiro de São Bento de Olinda
Doutor em Sagrada Liturgia
Membro do Centro de Liturgia Dom Clemente Isnard.
jeronimo.osb@gmail.com

 


[1] Publicado originalmente em italiano, in Servizio della Parola 467 (2015) 24-30.

[2] Cf. Zamagni S., «Organizazione del lavoro, uso del tempo e prospettive di civiltà», in A. Grillo – F. Alacevich – S. Zamagni, Tempo del lavoro e senso della festa, San Paolo, Cinesello Balsamo (Milano) 1999, 39-66.

[3] Grillo A., «Lavoro e festa cristiana in epoca postmoderna», in Id., F. Alacevich – S. Zamagni, Tempo del lavoro e senso della festa, San Paolo, Cinesello Balsamo (Milano) 1999, 67-108.

[4] Cf. Eliade M., Il mito dell’eterno ritorno, 3. ed. Borla, Roma 1989.

[5] Cf. Rahner H., L’homo ludens, Paideia, Brescia 2011.

[6] Magrassi M., «Fare festa: un bisogno irrinunciabile del cuore umano», in È festa! Per il Signore e per noi! Atti della XXXI settimana Liturgica Nazionale, Monastero di S. Giovanni Ev., Parma 1981, 20.

[7] Cf. Hb 10,5-10.

[8] S. Atanasio, Epist. II, 1, PG 26, 1366 D.

[9] Mosso D., «La domenica: da festa di precetto a pasqua settimanale», VM 184 (1991) 69-89.

[10] Cf. Di Muro V., La domenica, festa per risorgere, Riflessioni e proposte sulla festa nel suo autentico significato di gioia liberante per la salvezza integrale dell’uomo, Coletti, Roma 2001, 18.

[11] Augé M., La domenica, Festa primordiale dei cristiani, San Paolo, Cinesello Balsamo (Milano) 1995.

[12] Cf. João Paulo II, Dies Domini, 7, in EnchVat. 17, 900-1011, 599-601.

[13] Baronio L., «La domenica in parrocchia: dalla liturgia alla testimonianza della carità», VM 184 (1991) 139-148.

 

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