A palavra de Deus a partir da Sacrosanctum Concilium

Após 40 anos da promulgação da Sacrosanctum Concilium, constatamos em nossas comunidades muitos sinais de vivacidade e eficácia da palavra de Deus, ação constante do Espírito Santo no seio da Igreja.

Os padres conciliares cientes do valor e do significado da palavra de Deus para a vida da Igreja, afirmaram: “Nas celebrações litúrgicas restaure-se a leitura da Sagrada Escritura mais abundante, variada e apropriada” (SC 35,1).

Podemos perguntar aos padres conciliares: Por que restaurar? A liturgia é celebração da história da salvação, que tem como centro e plenitude o mistério pascal de Cristo (cf. SC 5-6). A Sagrada Escritura é o anúncio perene do plano divino da salvação (cf. SC 35,2) e a liturgia é o lugar privilegiado para fazer a experiência da salvação. Por isso, a mesa onde se reparte os tesouros bíblicos deve ser abundante e rica. (cf. SC 51).

1. A palavra de Deus recorda e prolonga a história da salvação

Deus, que é pleno de amor e misericórdia quer salvar e fazer com que todas as pessoas cheguem ao conhecimento da verdade (cf. SC 5).
Desde o Antigo Testamento vemos um Deus bondoso, que planejando e preparando com solicitude a salvação das pessoas, escolhe um povo a quem confia suas promessas (cf. Gn 15,18; Ex 24,8) e se revela por meio de palavras e obras a este povo eleito, como Deus único, vivo e verdadeiro (cf. DV 14).

As ações salvíficas eram explicadas pelas palavras dos profetas. Finalmente quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sujeito a lei, para resgatar os que estavam sob o jugo da lei (Gl 4,4); assim a palavra fez-se carne e habitou entre nós (Jo1,14). Até então, a comunicação entre Deus e as pessoas humanas era de uma maneira fragmentada e por etapas (cf. Hb 1,1). Em Jesus Cristo, essa comunicação é completa, pois Ele é a palavra única, perfeita e insuperável do Pai. Nele o Pai disse tudo, e não haverá outra palavra senão essa.(2)

Este mistério de salvação transmitido pela palavra divina continua na vida dos homens e mulheres, que acolhem a palavra ‘na obediência da fé’ (Rm 1,16) e por ela são convertidos, iluminados e santificados. A palavra tem a missão de fecundar a vida da pessoa de fé e ser para ela bênção copiosa. Então, o cristão(a) torna-se testemunha dessa palavra (cf. At 4,20), vivendo numa continua ação de graças.

2. Cristo: centro, mediador e plenitude da revelação

Jesus Cristo, encarnado na história humana até ao ponto de dar a vida para a salvação do mundo, é o centro e a plenitude da revelação, por isso é o centro das Escrituras. Toda a evocação da história da salvação gira em torno dele e é a partir dele que é realizada a leitura e interpretação da Sagrada Escritura – Antigo e Novo Testamento. Em Cristo tudo tem sentido, tudo fica esclarecido e tudo se orienta para ele, pois, principalmente pelo mistério pascal de sua sagrada paixão, ressurreição dos mortos e gloriosa ascensão, completou a obra da redenção humana e da perfeita glorificação de Deus (cf. SC 5).

A comunidade reunida em oração, pelo poder do Espírito Santo, anuncia e celebra o mistério pascal de Cristo, cada vez que proclama os dois testamentos. “No Antigo está latente o Novo, e no Novo se faz presente o Antigo. O centro e a plenitude de toda a Escritura e de toda celebração litúrgica é Cristo; por isso deverão beber de sua fonte todos os que buscam a salvação e a vida”.(3)

3. A liturgia, celebração da história da salvação

A salvação contida no anúncio da Sagrada Escritura é perene. A liturgia cristã é atuação ritual do evento real da salvação revelada em Jesus Cristo o salvador. A revelação realizada por Deus, que tem como mediador e plenitude Jesus Cristo, contida na Sagrada Escritura, ganha pleno significado, quando o texto é proclamado na celebração litúrgica, como relata a introdução do lecionário: “a economia da salvação, que a palavra de Deus não cessa de recordar e prolongar, alcança seu mais pleno significado na ação litúrgica, de modo que a celebração litúrgica se converta numa contínua, plena e eficaz apresentação desta palavra de Deus. Assim, a palavra de Deus, proposta continuamente na liturgia, é sempre viva e eficaz pelo poder do Espírito Santo, e manifesta o amor ativo do Pai, que nunca deixa de ser eficaz entre as pessoas” (OLM 4).

4. A presença real de Cristo na palavra

O Concílio Vaticano II ampliou e desenvolveu a noção da presença de Cristo na liturgia. Além de estar presente nas espécies eucarísticas, Cristo está presente na palavra, na pessoa do ministro, nos sacramentos, na assembleia reunida para orar e salmodiar.

Queremos destacar aqui o valor dado a presença de Cristo na palavra: “Cristo está presente na sua palavra, pois é Ele quem fala quando na Igreja se leem as Sagradas Escrituras” (SC 7). Para que os fiéis se alimentem também do Cristo presente na palavra, o Concílio recuperou a tradição de valorizar as duas mesas: palavra e eucaristia como atesta a Constituição Dei Verbum: “A Igreja sempre venerou a Sagrada Escritura(4) da mesma forma como o próprio Corpo do Senhor, porque, de fato, principalmente na sagrada liturgia, não cessa de tomar e entregar aos fiéis o pão da vida, da mesa da palavra de Deus como do corpo de Cristo” (DV 21). Portanto, as duas são fontes de alimento para todas as pessoas que delas se aproximam.(5) Dessa forma, a palavra de Deus é tão venerável quanto o Corpo Eucarístico de Jesus Cristo. Comungamos da mesa da palavra, assim como comungamos da mesa da Eucaristia.

Resgatando a palavra como alimento, o Concílio retomou o ensinamento da tradição e da teologia cristãs. Encontramos testemunhos dos Santos Padres, nos quais afirmam que a palavra da Sagrada Escritura é a presença de Deus entre nós, e que especialmente a palavra dos Evangelhos é a presença do Verbo encarnado. Assim, Inácio de Antioquia pode escrever que busca “refúgio no evangelho, como na carne de Jesus”.(6) É significativo o texto de Jerônimo (+419/420): “Quanto a mim, penso que o Evangelho é o corpo do Cristo e que a Sagrada Escritura é sua doutrina. Quando o Senhor fala em comer sua carne e beber seu sangue, é certo que fala do mistério (da Eucaristia). Entretanto, seu verdadeiro corpo e seu verdadeiro sangue são (também) a palavra da Escritura e sua doutrina”.(7) Lemos constantemente nos escritos de Orígenes a ideia da presença de Cristo na palavra, por exemplo: “Como Cristo veio escondido no corpo,… assim também toda a Sagrada Escritura é a sua incorporação”.(8) Mais tarde, Santo Agostinho vê na Sagrada Escritura uma encarnação permanente do Verbo divino: “O verdadeiro Cristo está na palavra e na carne”.(9)

Nesta mesma linha, Cesário de Arles, retomando a ideia de Orígenes(10) afirma que a palavra de Deus não vale menos que o corpo de Cristo: “Eu lhes pergunto, irmãos e irmãs, digam o que, na opinião de vocês, tem mais valor: a palavra de Deus ou o Corpo de Cristo? Se quiserem dar a verdadeira resposta, certamente deverão dizer que a palavra de Deus não vale menos que o Corpo de Cristo. E por isso, todo o cuidado que tomamos quando nos é dado o Corpo de Cristo, para que nenhuma parte escape de nossas mãos e caia por terra, tomemos este mesmo cuidado, para que a palavra de Deus que nos é entregue, não morra em nosso coração enquanto ficamos pensando em outras coisas ou falando de outras coisas; pois aquela pessoa que escuta de maneira negligente a palavra de Deus, não será menos culpada do que aquela que, por negligência, permitir que caia por terra o Corpo de Cristo”.(11)

Portanto, tanto o mistério da palavra como o da Eucaristia, conduzem ao mistério do Cristo Senhor.(12)

5. O Espírito Santo, intérprete da palavra

A Dei Verbum afirma: “… a Sagrada Escritura é palavra de Deus enquanto escrita por inspiração do Espírito Santo”.(13) É, portanto, fruto do Espírito e, consequentemente deve ser interpretada à luz do mesmo Espírito (cf. DV 12).

O apóstolo São João apresenta o Espírito Santo como a inteligência e a memória do cristão: “O valedor, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que eu vos disse” (Jo 14,26). O Espírito nos capacita então para acolher como também para viver a palavra de Deus.

Na verdade, existe uma relação entre a palavra de Deus que é proclamada e a ação do Espírito Santo: “Para que a palavra de Deus realmente produza nos corações aquilo que se escuta com os ouvidos, requer-se a ação do Espírito Santo, por cuja inspiração e ajuda a palavra de Deus se converte no fundamento da ação litúrgica e em norma e ajuda de toda a vida. Assim, a atuação do Espírito Santo não só precede, acompanha e segue toda a ação litúrgica, mas também sugere ao coração de cada um tudo aquilo que, na proclamação da palavra de Deus, foi dito para toda a comunidade dos fiéis; e, ao mesmo tempo que consolida a unidade de todos, fomenta também a diversidade de carismas e a multiplicidade de atuações” (OLM 9). “Aqui nos encontramos com a liturgia do Espírito e com o Espírito da liturgia, ou seja, com o fundamento do sentido pneumatológico da liturgia e, consequentemente, das celebrações da palavra. Assim, quando se celebra a palavra de Deus, o Espírito revela aqui e agora seu conteúdo de salvação”.(14)

O Espírito nos faz ouvintes da palavra de Deus, e mais, atua de tal forma em nós, que de ouvintes, nos faz profetas, capazes de anunciar e denunciar. O Espírito então, nos introduz na celebração e na experiência cristã dos tesouros salvíficos da palavra de Deus, e com Ele a palavra se torna verdadeiro acontecimento de salvação em nossa história. Desse modo, nos situamos no hoje salvífico de Jesus Cristo.

6. A Palavra celebrada – O diálogo de Deus com seu povo e do povo com Deus

A preocupação dos padres conciliares de devolver a palavra de Deus ao povo causou várias implicações para as celebrações litúrgicas.

6.1 O diálogo entre os parceiros da Aliança

Ao celebrar, a assembleia dialoga com Deus que fala ao seu povo e, responde a Ele com cantos e orações (cf. SC 33). Desenvolve-se, então, um verdadeiro diálogo de Deus com seu povo reunido, um colóquio contínuo do Esposo e da Esposa.

A liturgia lembra constantemente a palavra revelada e, desta forma, evoca e atualiza os feitos salvíficos de Deus. O lembrar, faz com que a comunidade conheça a vontade de Deus, o que ele quer, seu projeto de salvação. Então, nasce a resposta à palavra de Deus, ou seja, o louvor, a ação de graças, a súplica, a intercessão, os gestos e as ações simbólicas. Assim, sob diversas formas, o Senhor da aliança, “ora interpela, ora ensina, ora exorta, ora ‘diz e faz’. Por sua vez, a assembleia escuta, responde, medita, suplica, dá graças até se identificar com a palavra que, vinda do Pai, volta para se unir e ele numa comunhão eterna”.(15)

A dinâmica celebrativa das celebrações litúrgicas nos insere na lógica da revelação. Deus chama, reúne, e a comunidade, atendendo ao seu chamado, se apresenta e responde à Ele.

A celebração litúrgica no seu conjunto, possui uma estrutura de base que favorece o diálogo: a liturgia da palavra e a liturgia eucarística. A Sacrosanctum Concilium, falando sobre a celebração eucarística afirma que “liturgia da palavra e liturgia eucarística, estão tão estreitamente unidas que formam um só ato de culto” (cf. n. 56). Numa relação de aliança os dois momentos estão estreitamente unidos: a palavra constitui o momento do contrato, através do diálogo e a liturgia eucarística o momento em que a comunidade cheia do Espírito, dá sua resposta e sela o compromisso com Deus. A palavra é então fundamento sobre o qual a aliança se firma.

A própria liturgia da palavra possui uma dinâmica dialogal: Deus fala nas leituras (AT, NT e Evangelho) e a comunidade responde, cantando o salmo responsorial, elevando suas súplicas ou agradecimentos, professando a fé… Temos também a homilia que apresenta a proposta de Deus e também a resposta da comunidade. Com razão, a Sacrosanctum Concilium e o Ordo Lectionum Missae valorizaram as leituras bíblicas, o salmo responsorial, a aclamação, a homilia, o silêncio, a profissão de fé e a oração dos fiéis.(16)

6.2 A dimensão simbólico-sacramental da proclamação da palavra de Deus

O leitor ou a leitora ao proclamar a palavra de Deus na celebração litúrgica está realizando um gesto simbólico-sacramental. É o próprio “Cristo que fala quando se leem as Sagradas Escrituras na Igreja” (SC 7). Para fazer experiência da Salvação que a palavra anuncia e realiza, a liturgia se serve de sinais sensíveis (cf. SC 7).

Os sinais sensíveis evocam, revelam e manifestam a “outra realidade” (o mistério da nossa salvação que tem como centro e fundamento o mistério pascal de Cristo). Mais ainda, os sinais sensíveis realizam o que significam. A significação não acontece automaticamente, depende da preparação dos leitores, da assembleia litúrgica, do lugar da proclamação da palavra, ou seja, dos sinais sensíveis.

a) Os ministros e ministras da liturgia da Palavra

São diversos os ministros e ministras que se colocam a serviço do Senhor e da assembleia litúrgica para a proclamação da Palavra de Deus.

Os leitores e leitoras assumem um verdadeiro ministério litúrgico (cf. SC 29). Proclamam a palavra do Senhor, são servidores de Jesus Cristo, emprestam a própria voz para que o anúncio salvífico chegue ao coração das pessoas. Para isso é importante a preparação dos mesmos: “O que mais contribui para uma adequada comunicação da palavra de Deus à assembleia por meio das leituras é a própria maneira de proclamar dos leitores, que devem fazê-lo em voz alta e clara, tendo conhecimento do que leem” (OLM, 14). Daí exige-se dos que proclamam as leituras “uma preparação em primeiro lugar espiritual, mas é necessária também uma preparação técnica. A preparação espiritual supõe pelo menos dupla instrução: bíblica e litúrgica. A instrução bíblica deve encaminhar-se no sentido de que os leitores possam compreender as leituras em seu contexto próprio e entender à luz da fé o núcleo central da mensagem revelada. A instrução litúrgica deve facilitar aos leitores certa percepção do sentido e da estrutura da liturgia da palavra e a relação entre a liturgia eucarística. A preparação técnica deve capacitar os leitores para que se tornem sempre mais aptos na arte de ler diante do povo, seja de viva voz, seja com a ajuda de instrumentos modernos para a ampliação da voz” (OLM 55).

O diácono é o ministro que tem a função de proclamar o Evangelho, ponto alto da liturgia da palavra (cf. OLM 13,17) e também fazer de vez em quando a homilia (cf. OLM 50).

O salmista entoa o salmo que é palavra de Deus cantada. Este deve ser “dotado da arte de salmodiar e de uma boa pronúncia e dicção” (OLM 56; IGMR 102). Para este também é necessário formação bíblico-litúrgica, espiritual, musical e técnica.

O homiliasta que na maioria das vezes é o presidente da celebração, ou eventualmente um outro padre ou diácono (cf. OLM 38, 41, 50; IGMR 66), faz a homilia de tal forma que o povo compreenda saborosamente a palavra de Deus e possa ligar textos sagrados, a realidade na qual vivemos e o mistério celebrado.

O(a) animador(a) introduz as leituras, com palavras claras, sóbrias e concisas, ajudando a assembleia a estar atenta para a escuta.

É importante a postura do corpo, o tom da voz, o olhar dos ministros e ministras da palavra, a boa qualidade do som… Tudo deve preparado e realizado com verdadeira unção para que a palavra de Deus seja proclamada dignamente e cumpra sua missão.

b) A assembleia ouvinte da Palavra

Deus quer dialogar com seu povo e transmitir sua palavra salvífica. A assembleia, animada pela fé escuta atentamente a palavra da aliança, com o ouvido do coração. Da escuta brota a resposta cheia de fé de um povo que quer sempre mais firmar a aliança com o Deus salvador.

A palavra reúne, faz crescer e alimenta o povo de Deus (cf. OLM 44; DV 21). A palavra é força de salvação para os que creem. Cabe à assembleia escutar com disposição interior e exterior para que cresça na vida espiritual e na experiência do mistério na celebração e na vida cotidiana.(17)

c) A mesa da Palavra

A dignidade da palavra de Deus requer um lugar digno da proclamação dos tesouros bíblicos (cf. OLM 32l; IGMR 309). É chamado de ambão, ou seja, lugar elevado ou mesa da Palavra. A mesa onde os fiéis se alimentam da Palavra deve ter uma estrutura estável. E importante uma íntima proporção entre as duas mesas: Palavra e Eucarística (cf. OLM 32; IGMR 309).

Da mesa da Palavra se proclama as leituras (AT, NT e evangelho), o salmo, o precônio pascal, a homilia (pode ser feita também da cadeira do presidente) e a oração dos fiéis (cf. OLM 33, IGMR 309).

d) Os livros

Os lecionários e o evangeliário “lembram aos fiéis a presença de Deus que fala a seu povo. Portanto, é preciso procurar que estes, que são sinais e símbolos das realidades do alto na ação litúrgica, sejam verdadeiramente dignos, decorosos e belos” (OLM 35). Pela importância que o evangelho ocupa na liturgia da palavra, o livro dos evangelhos requer mais veneração: é levado em procissão (IGMR 194) e incensado (cf. IGMR 133-134).

e) Os gestos e atitudes do corpo na proclamação e escuta da Palavra

Na liturgia da palavra numa atitude de discípulos, ouvimos, falamos, cantamos, sentimos o cheiro do incenso, vemos o leitor, a procissão com o evangeliário, tocamos o livro, fazemos silêncio.

Como assembleia de fé, ficamos de pé ao escutar o evangelho, ficamos sentados para ouvir as leituras e responder à palavra de Deus com o salmo responsorial.

Os ministros, conforme a função que lhes cabe, proclamam a Palavra de pé, carregam o evangeliário em procissão, incensam e beijam o livro. Olham a assembleia com um olhar amoroso e escutam a resposta da assembleia.

Os gestos e as atitudes nos ligam ao mistério pascal de Jesus Cristo.

6.3 A reforma dos lecionários

O Concílio estabeleceu um critério para a reforma dos lecionários: “Com a finalidade de mais ricamente preparar a mesa da palavra de Deus para os fiéis, os tesouros bíblicos sejam mais largamente abertos, de tal forma que dentro de um ciclo de tempo estabelecido se leiam ao povo as partes mais importantes da Sagrada Escritura” (SC 51).

De olho nesse princípio e nas orientações do Concílio, o “Consilium”, Conselho para execução da Constituição de Liturgia, com a ajuda de peritos, organizou o lecionário que teve sua primeira publicação em 1969 e revisão em 1981.

Dessa maneira, nas diversas celebrações litúrgicas, a comunidade, reunida para celebrar, recebe os múltiplos tesouros da única palavra de Deus, seja no decorrer do ano litúrgico em que se recorda o mistério de Cristo em seu desenvolvimento anual, semanal e diário, como também nas celebrações dos sacramentos e sacramentais.(18) Temos então um elenco de leituras bíblicas para os domingos (ano ABC), para as celebrações dos sacramentos e sacramentais, para as celebrações eucarísticas semanais (ano par e ano ímpar) e para as celebrações dos santos.

Bom seria se as assembleias litúrgicas valorizassem o livro (lecionário) como sinal celebrativo: “os livros das leituras que se utilizam na celebração, pela dignidade que a palavra de Deus exige, não devem ser substituídos por outros subsídios pastorais, por exemplo, pelos folhetos, que se fazem para que os fiéis preparem as leituras ou as meditem pessoalmente” (OLM 37).

6.4 A valorização da celebração da palavra de Deus

“Promova-se a celebração da palavra de Deus nas vigílias das festas solenes, em alguns dias feriais do advento e da quaresma e nos domingos e dias de festa, especialmente onde não houver padre; neste caso será um diácono, ou outra pessoa delegada pelo bispo a dirigir a celebração” (SC 35,4).

Com este pronunciamento a constituição conciliar Sacrosanctum Concilium, põe o selo oficial, no que diz respeito a prática das celebrações ao redor da palavra de Deus. O documento conciliar, além de assumir tais celebrações, ainda as incentiva.

Vários documentos posteriores ao Vaticano II(19) ofereceram orientações e reflexões que contribuíram para que a celebração da palavra de Deus aos poucos fosse ganhando corpo e estrutura de uma celebração litúrgica com uma dinâmica dialogal: Deus convoca e chama a assembleia, sujeito eclesial da celebração; para escutar sua palavra, ao longo do ano litúrgico; a palavra proclama a história da salvação, que tem como centro o mistério pascal de Cristo. A palavra celebrada torna-se acontecimento de salvação e diálogo de Deus com as pessoas, através dos gestos e ações simbólicas.

No Brasil, são milhares de comunidades que, não tendo a presença do presbítero, celebram o mistério de Cristo em suas vidas através da palavra de Deus.(20)

Dom Clemente Isnard afirma que: “sem a celebração da palavra de Deus não teremos verdadeiras comunidades eclesiais de base, e, sem estas, o povo brasileiro, em grande parte, não conservaria a fé católica”.(21)Sem as celebrações dominicais ao redor da palavra de Deus, certamente a Igreja sucumbiria, pois são 70% das comunidades, aqui no Brasil, que sem poder celebrar a eucaristia, se reúnem aos domingos para celebrar ao redor da palavra de Deus.

Sabemos que as celebrações dominicais da palavra de Deus, presididas por leigos ou leigas são de grande valor: garantem a memória da páscoa no dia do Senhor; são um espaço onde os participantes nutrem a fé cristã através da escuta da palavra que é anunciada e, a partir da escuta, dialogam com Deus; reforçam a dimensão comunitária e o compromisso com as iniciativas de evangelização.(22)

7. A Igreja, praticante da palavra de Deus

Podemos dizer que a palavra faz a Igreja e a Igreja faz nascer a palavra, não no sentido de a inventar, mas ao encarná-la e atualizá-la em sua realidade. Vejamos a afirmação do Ordo Lectionum Missae: “A Igreja cresce e se constrói ao escutar a palavra de Deus, e os prodígios que de muitas formas Deus realizou na história da salvação fazem-se presentes, de novo, nos sinais da celebração litúrgica, de um modo misterioso, mas real; Deus, por sua vez, vale-se da comunidade dos fiéis que celebra a liturgia, para que a sua palavra se propague e seja conhecida, e seu nome seja louvado por todas as nações. Portanto, sempre que a Igreja, congregada pelo Espírito Santo na celebração litúrgica, anuncia e proclama a palavra de Deus, se reconhece a si mesma como o novo povo, no qual a aliança antigamente travada chega agora à sua plenitude e perfeição. Todos os cristãos, que pelo batismo e a confirmação no Espírito se converteram em mensageiros da palavra de Deus, depois de receberem a graça de escutar a palavra, devem anunciá-la na Igreja e no mundo, ao menos com o testemunho de sua vida. Esta palavra de Deus, que é proclamada na celebração dos divinos mistérios, não só se refere às circunstâncias atuais, mas também olha o passado e penetra o futuro, e nos faz ver quão desejáveis são as coisas que esperamos, para que, no meio das vicissitudes do mundo nossos corações estejam firmemente postos onde está a verdadeira alegria” (OLM 7).

A palavra edifica a Igreja, povo de batizados, que reunida em assembleia, movida pelo dom do Espírito Santo, abre o ouvido do coração para escutar, celebrar e mais ainda, para proclamar e anunciar o acontecimento da salvação.

8. Desafios que ainda restam

Constatamos que após o Concílio Vaticano II houve muito empenho e realizações para que o povo de Deus pudesse se alimentar na mesa da palavra de Deus, contudo ficam ainda desafios:

  • Uma sistemática preparação de leitores, salmistas, para que a proclamação da Palavra de Deus seja de fato um diálogo amoroso entre Deus e a comunidade de fé.
  • Valorizar a homília como parte integrante da liturgia e empenhar-se na preparação dos homiliastas.
  • Dar o devido valor ao livro (lecionário, evangeliário) como sinal e símbolo da realidade maior celebrada na liturgia.
  • Valorizar o lugar da proclamação da palavra de Deus, utilizando material nobre.
  • Melhorar o sistema de som de nossas igrejas.

Certamente, cada comunidade de acordo com sua realidade poderá avaliar o que pode fazer para que a mesa da palavra seja abundante e rica, bem preparada. Que o diálogo entre os parceiros da Aliança aconteça, de modo que aos poucos, vamos nos transformando e mudando a nossa realidade, como muito bem expressa um lavrador de Pernambuco: “Fui notando que se a gente vai deixando a palavra de Deus entrar dentro da gente, a gente vai se divinizando. Assim, ela vai tomando conta da gente e a gente não consegue mais separar o que é de Deus e o que é da gente. Nem sabe muito bem o que é palavra dele e palavra de gente. A Bíblia fez isso em mim”.(23)

Siglas utilizadas: SC (Sacrosanctum Concilium); DV (Dei Verbum); OLM (Ordo Lectionum Missae); IGMR (Introdução Geral do Missal Romano).

(1) Cf. CATECISMO da Igreja Católica. n. 65.

(2) Introdução do Ordo Lectionum Missae, n. 5. Ver também Dei Verbum, n. 2, 3, 7, 15, 16, 24.

(3) “O respeito pela Palavra de Deus era tão grande que, a Escritura Sagrada, especialmente os Evangelhos, eram guardados num cofre semelhante ao sacrário. Na abside das igrejas havia à direita e à esquerda um “sacrário”, um para guardar a eucaristia, o outro para guardar a Bíblia”. LUTZ, Gregório. Teologia da liturgia dominical da comunidade sem padre. Revista de Liturgia, São Paulo, v. 9, n. 52, p. 4, jul./.ago. 1982.

(4) Ver também Introdução do Ordo Lectionum Missae, n. 10.

(5) INÁCIO DE ANTIOQUIA, Santo. Cartas de Santo Inácio. Petrópolis: Vozes, 1978,  p. 72.

(6) Jerônimo, São. In: Isaiam, Prologus. Corpus Christianorum, Series Latina, t. 63, p. 1, apud DEISS, Lucien. A palavra de Deus celebrada: teologia da celebração da Palavra de Deus, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 36.

(7) Orígenes. Commentariorum series. In: GCS 38,45, apud LUTZ, Gregório. Teologia da liturgia dominical da comunidade sem padre, p. 4.

(8) Augustinus. In: Ev. Joannis Tract. 26,12; CChr SL 36, 266, apud LUTZ, Gregório. Teologia da liturgia dominical da comunidade sem padre, p. 4.

(9) “Vocês que podiam participar dos santos mistérios, sabem: Quando lhes é dado o corpo de Cristo, vocês o guardam com todo cuidado e veneração, para que nada caia no chão e nada se perca do dom consagrado. Porque vocês se sentem culpados – e sentem certo – se algo caísse por negligência. Se tomam cuidado para guardar o seu corpo – e tem razão –, como podem então pensar que seja uma culpa menor, desprezar a palavra de Deus?” Orígenes. Homilias sobre o Haxateuco na Tradução de Rufino, Ex  13,3; GCS 29, 274, apud LUTZ, Gregório. Teologia da liturgia dominical da comunidade sem padre, p. 4.

(10) Orígenes. Sermon 78,2; Sources Chrétiennes, 330, p. 241, apud BUYST, Ione. A palavra de Deus na liturgia, São Paulo: Paulinas, 1990, p. 19.

(11) Cf. DEISS, Lucien. A palavra de Deus celebrada: teologia da celebração da palavra de Deus, p. 37-38.

(12) Dei Verbum, n. 9. E ainda: “As coisas reveladas por Deus, que se encontram e manifestam na Sagrada Escritura, foram escritas por inspiração do Espírito Santo. Com efeito, a santa Mãe Igreja, por fé apostólica, considera como sagrados e canônicos os livros inteiros tanto do Antigo como do Novo Testamento, com todas as suas partes, porque, tendo sido escritos por inspiração do Espírito Santo (cf. Jo 20,31; 2Tm 3,16; 2 Pd 1,19-21; 3,15-16), têm a Deus por autor e como tais foram confiados à própria Igreja. Todavia, para escrever os Livros Sagrados, Deus escolheu homens, que utilizou na posse das faculdades e capacidades que tinham, para que, agindo Deus neles e por meio deles, pusessem por escrito, como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo que ele quisesse…” Dei Verbum, n. 11.

(13) FERNANDEZ, Pedro. Celebraciones de la Palabra. In: Sartore, Domenico; Triacca, Achille Maria Luigi (Orgs.). Nuovo Diccionário de Liturgia, Madrid: Paulinas, 1977, p. 358.

(14) GELINEAU, J. Em vossas assembleias: sentido e prática da celebração litúrgica. v. 1. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1975, p. 147-148.

(15) Cf. Sacrosanctum Concilium, n. 51-53 e Ordo Lectionum Missae, n. 11-31.

(16) Cf. OLM n. 44-48.

(17) Cf. Ordo Lectionum Missae, n. 3.

(18)Cf. Inter Oecumenici, n. 37-39; Código de Direito Canônico, cânon 1248, § 2; Congregação para o Culto Divino. Diretório para celebrações dominicais na ausência do presbítero; CELAM. Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. Documento de Medellin, p. 96; CELAM. Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. Documento de Puebla, n. 900, 929, 944; CELAM. Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. Documento de Santo Domingo, n. 51; CNBB, Animação da vida litúrgica no Brasil. 22. ed. São Paulo: Paulinas, 2016. (Documentos da CNBB, 43), n. 93-102; CNBB. Orientações para a celebração da Palavra de Deus. (Documentos da CNBB, 52). Sobre a distribuição da comunhão fora da missa: Instrução Eucharisticum Myterium, n. 33; Ritual da Sagrada Comunhão e o Culto Eucarístico fora da missa, n. 6, 14, 26.

(19) Cf. CNBB. Animação da vida litúrgica no Brasil, n. 93 e Orientações para a celebração da Palavra de Deus, p. 5.

(20) Veja o prefácio do livro de BUYST, Ione. Celebração do domingo ao redor da Palavra de Deus, 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 8.

(21) Cf. MARINI, Pietro. La eventual presidencia liturgica de los laicos en ausencia del sacerdote. Phase, Barcelona: CPL, v. 27, n. 158, mar./ apr. 1978, p. 126.

(22) Mesters, Carlos. Por trás da Palavra. Boletim n. 46, 1988, p. 28.

Ir. Veronice Fernandes (PDDM)

Mestre em Liturgia, Vice-Coordenadora do Centro de Liturgia Dom Clemente Isnard.
Assessora encontros de formação litúrgica. São Paulo, SP.