Uma observação preliminar

Eu não entendo o subtítulo desta exposição que consta no programa da 31ª Semana de Liturgia (“fazendo referência aos textos que aparecem no lecionário”) num sentido restritivo, como se ele quisesse dizer que devo tratar de Maria apenas fazendo algumas referências aos textos bíblicos que aparecem em nossos lecionários. Eu vou tratar de Maria na Bíblia, quer dizer, mostrar o que a Bíblia diz de Maria, da Mãe de Jesus, e nesta indagação considerar, talvez em primeiro lugar, os textos sobre Maria que são apresentados em nossos lecionários para as festas e outras celebrações de Nossa Senhora. Por outro lado, também não vou desconsiderar textos bíblicos que não constam nos lecionários, mas existem, e que pelo menos podem ser entendidos em relação a Maria. E mais uma coisa: não me sinto obrigado a considerar e resolver problemas propriamente litúrgicos que um ou outro texto talvez apresenta. Pretendo, portanto, tratar de Maria na Bíblia.

1. Maria no Antigo Testamento                  

Maria é uma pessoa do Novo Testamento. Mas, ela nasceu e cresceu no mundo, na cultura e   na religião do seu povo hebraico. Este é o substrato, presente também nos evangelhos e em todos os escritos do Novo Testamento, quando eles falam de Maria. Se queremos conhecer Maria na Bíblia, devemos certamente nos debruçar de modo especial sobre o Novo Testamento, mas também não negligenciar o Antigo e, com ele, este substrato.

Encontram-se no Antigo Testamente dois textos bastante explícitos que não somente na liturgia católica, mas também na compreensão dos exegetas, e não somente dos católicos, são considerados como profecias que parecem anunciar Maria e sua missão na história da salvação. O primeiro dele é até chamado “Proto-Evangelho”.

Ainda no início da Bíblia, no 3º capítulo do livro do Gênesis, depois do pecado de Adão e Eva, Iahweh diz em sua fala à serpente: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre tua linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás a cabeça” (3.16). Na Bíblia de Jerusalém, em sua edição brasileira da Paulus Editora de 2002, este versículo se interpreta em nota de rodapé da seguinte forma:

Este versículo constata a hostilidade fundamental entre a serpente e a humanidade, mas deixa entrever a vitória final da humanidade; é um primeiro clarão de salvação, ou “Proto-evangelho”. A tradução grega, começando a última frase com um pronome masculino, atribui esta vitória não à linhagem da mulher em geral, mas a um dos filhos da mulher; dessa forma é estimulada a interpretação messiânica já na tradição judaica antiga, depois retomada e explicitada por muitos Padres da Igreja. Com o messias, sua mãe é implicada e a interpretação mariológica e a tradução latina ipsa conteret tornou-se tradicional na Igreja.

Outro texto, tradicionalmente relacionado a Maria, é do livro do profeta Isaías (7.14): “Eis que a jovem concebeu e dará à luz um filho e dar-lhe-á o nome de Emanuel”. A Bíblia de Jerusalém explica:

O sinal que o rei Acaz recusou a pedir, é-lhe dado [….] por Deus. É o nascimento de um menino cujo nome, Emanuel, isto e, “Deus conosco” (cf. 8,8.10) é profético (cf. 1,26) e anuncia que Deus protegerá e abençoará Judá. [….] A profecia do Emanuel ultrapassa […] sua realização imediata, e foi legitimamente que os evangelistas (Mt 1,23 citando Is 7,14; Mt 4,15-16 citando Is 8,23-9,1), depois toda a tradição cristã, nela reconheceram o anúncio do nascimento de Cristo.

O substrato mariano do AT em figuras e acontecimentos que apontam para Maria

A primeira e talvez mais relevante figura veterotestamentária para a compreensão evangélica de Maria é, sem dúvida, Eva. Ela recebeu de Deus o dom da vida e a missão de transmiti-la, de modo que é a mãe de todos os viventes no plano natural, ao passo que Maria foi chamada a ser a mãe de Jesus e de todos que a ele pertencem, especialmente na Igreja que nasceu na cruz, sendo simbolizado este nascimento pela água e o sangue que jorraram do coração de Jesus, quando foi perfurado pela lança. Aí sobretudo, ela se tornou mãe de todos que vivem a nova vida que Jesus nos mereceu pela sua morte. Como Eva é considerada colaboradora de Deus no plano da criação, Maria o é no plano da salvação

A segunda figura mais importante do AT, tido como typos de Maria, é Abraão, o pai da fé do antigo povo eleito. De modo paralelo a ele, Maria se considera a mãe da fé dos crentes do novo povo de Deus. De fato, como Abraão acreditou contra tudo que se podia considerar possível, assim também Maria, como se mostrou sobretudo quando o anjo lhe disse que ia ser a mãe do Filho de Deus.

Como figuras de Maria no Antigo Testamento podemos considerar também as mulheres que estavam no início da vida de Moisés e preservaram a criança recém-nascida da morte: a mãe dele e a filha do Faraó.

Familiares nos são dois outros personagens do AT: Judite e Ester. Judite salva o povo do perigo iminente de uma derrota fatal; Ester o salva da morte já decretada, pela sua intercessão junto ao rei. Assim as duas prefiguram Maria que preserve seu filho da morte, fugindo com ele e com José para o Egito, para protegê-lo diante de Herodes que o queria matar. Esta fuga de Maria e José com Jesus pode-se ver prefigurada também na saída do povo de Israel da escravidão do Egito, de uma situação de morte.

A cena da anunciação do nascimento de Jesus pelo anjo Gabriel evoca várias anunciações do Antigo Testamento, sobretudo a de Samuel à sua mãe Ana (1 Sm 1), mas também a de Isaac a Sara, a esposa de Abraão (Gn 18,9-16).

Assim apontamos do Antigo Testamento algumas pessoas e acontecimentos que foram relacionados ou que podemos ver em relação com Maria, a mãe de Jesus, e com acontecimentos da vida dela.  Mas não são apenas estas ou mais algumas outras pessoas ou fatos pontuais do mundo religioso e cultural de Israel do Antigo Testamento que podem ter ou tiveram alguma relação com Maria e sua missão. Era também todo o ambiente em que ela nasceu e cresceu que formou o substrato da sua vida.

2. Maria no Novo Testamento

Parece conveniente grupar os textos do Novo Testamento que falam de Maria, da mãe de Jesus, ou que se relacionam com ela, do seguinte modo:

  1. Os relatos da infância nos dois primeiros capítulos dos evangelhos de Mateus e Lucas;
  2. Os outros textos nos evangelhos sinóticos;
  3. Os textos no evangelho de João;
  4. Os textos em outros escritos do Novo Testamento.

Os relatos da infância de Jesus

O evangelho de São Mateus começa com a genealogia, na qual se elencam, de Abraão até José e Maria, os antepassados de Jesus. Como de costume no mundo do Antigo Testamento, são normalmente os homens de cada geração, só algumas vezes, excepcionalmente, também uma ou outra mulher. Maria é simplesmente mencionada como esposa de José, nem sendo ela um elo na genealogia, e dela nasce Jesus. Isso pode ser de influência helenista, para expressar a origem de uma personagem extraordinária, que não tem origem humana normal, e pode apontar para sua origem divina e a virgindade de sua mãe. Atrás disso está a mentalidade cultural do mundo mediterrâneo e semita patriarcal, que a mulher no nascimento de um filho não contribui com nada a não ser que coloca à disposição o seu corpo, para que a semente e depois o recém-nascido se possa desenvolver. Neste contexto podemos também com facilidade compreender o protagonismo de José em todo o relato da infância de Jesus conforme São Mateus: na gravidez de Maria e também na fuga para o Egito, ao passo que ela, em tudo isso, é uma figura passiva.

No relato sobre a reação de José à gravidez de Maria observamos de novo o protagonismo de José, mas sobretudo a sua honestidade e seu amor para com sua esposa, assumindo até a paternidade legal de Jesus. O nascimento de Jesus Mateus não conta. Na visita dos magos, que Mateus relata, José nem é mencionado. Como no relato sobre a gravidez de Maria, mostra-se também mais tarde na fuga ao Egito, a comunhão profunda de José com Deus e sua obediência às orientações divinas.

No relato de São Lucas, Maria é bem mais apresentada como protagonista, sobretudo na anunciação e na visita a Isabel. Na anunciação, Deus se dirige pelo anjo a ela mesma. Ela escuta e acolhe a palavra de Deus dialogando com o anjo no mais fundo do seu coração, e desta profundeza do seu ser ela diz o seu “Sim”. Esta palavra dela era a condição para a Palavra de Deus em pessoa, o Filho de Deus, se fazer carne no seio dela. Era o começo do mundo novo. Este, como observamos, não foi mais criado simplesmente pela palavra de Deus, de modo que Deus falou e o que ele disse aconteceu. Agora o Novo acontece em diálogo de Deus com a humanidade.

No todo do relato de infância de Jesus Lucas oferece uma imagem de Maria muito rica. Ela e a Cheia de graça (1,28), a Virgem (1,34), a Esposa do Espírito Santo (1,35), a Mãe do Filho de Deus (1,35), a Serva obediente do Senhor (1,38), a Mãe das dores (2,35). Aliás, como sofredora, como lhe foi anunciado na apresentação do seu filho templo (Lc 2,35), Maria aparece muitas vezes no Novo Testamente, desde o nascimento de Jesus em Belém até a sua morte na cruz.

Bem característico é, no entanto, para Maria, que nos momentos surpreendentes ela não fala, mas guarda o que aconteceu ou foi dito, em seu coração e o medita. Grande exceção é o Magnificat na visita a Isabel. Parece que só com Deus ela falou longamente. Mais uma outra vez ela se expressou num caso destes; era quando Jesus, na idade de doze anos, no fim da romaria a Jerusalém, ficou no templo, sem avisar Maria e José. Quando finalmente seus pais o encontraram, sua mãe lhe disse: “Meu filho, por que agiste assim conosco? Olha que teu pai e eu, aflitos, te procurávamos” (Lc 2,48). O evangelista diz que “eles não compreenderam a palavra que ele lhes disse”; mas acrescenta meio logo que sua mãe” conservava a lembrança de todos esses fatos em seu coração” (Lc 50-51).

Nas bodas de Caná era outo caso. Maria se preocupou com o andamento da festa, porque o vinho estava acabando; Aí ela queria ajudar, servir, e por isso se dirigiu a Jesus e depois aos serventes.

Maria parece ter ficado sempre neste silêncio, meditando os caminhos que Deus traçou.

Outros textos nos evangelhos sinóticos

Um dos momentos significativos da vida púbica de Jesus é relatado pelos três sinóticos. Eis aqui o texto do evangelho de São Marcos (3,31-35; par. Mt 12,46-50; Lc 8,19-21):

Chegaram então sua mãe e seus irmãos e, ficando do lado de fora, mandaram chama-lo. Havia uma multidão sentada em torno dele. Disseram-lhe: “Eis que tua mãe, teus irmãos e tuas irmãs estão lá fora e te procuram. ”Ele perguntou: “Quem é minha mãe e meus irmãos?” E, repassando com o olhar os que estavam sentados ao seu redor, disse: “Eis a minha mãe e meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe”.

O texto paralelo de Mateus é praticamente idêntico com o apresentado de Marcos. Lucas omite a pergunta de Jesus e a observação que ele olhou ao seu redor, mas escreve em outro contexto (11,27-28):

Enquanto ele (Jesus) […] falava, certa mulher levantou a voz do meio da multidão e disse: “Felizes as entranhas que te trouxeram e os seios que te amamentaram!” Ele, porém, respondeu: “Felizes, antes, os que ouvem a palavra de Deus e a observam”.

Marcus apresenta ainda um pequeno texto sem paralelo, que certamente pertence a este episódio do qual estamos tratando. Ele escreve no mesmo capítulo 3 do seu evangelho, nos versículos 20 a 21:

E (Jesus) voltou para sua casa. E de novo a multidão se apinhou, de tal modo que eles não podiam se alimentar. E quando os seus tomaram conhecimento disso, saíram para detê-lo, porque diziam: ”Enloqueceu!”

Esta saída dos parentes de Jesus, de Nazaré a Cafarnaum, pode bem ter sido aquela que os levou a Jesus naquele momento em que ele chegou a declarar que seus parentes são aqueles que fazem a vontade de Deus.

O fato que estes textos descrevem, confirma e reforça, agora na vida pública de Jesus, aquilo que já tinha ficado claro para Maria, e certamente também para José, no templo de Jerusalém, quando Jesus, aos doze anos, declarou que para ele conta a casa do Pai. Os três sinóticos reconhecem isso por unanimidade, e João, no quarto evangelho, deixa Jesus dizer o mesmo, no relato das bodas de Caná e, quando conta como ele, João, esteve com Maria debaixo da cruz.

Contudo, antes de passarmos para o quarto evangelho, vejamos ainda como na visita a Nazaré, quando Jesus falou na sinagoga, os ouvintes se maravilharam e até ficaram escandalizados pela sabedoria do “filho de Maria” e os milagres que realiza (Mc 6,1-6; par. Mt 13,54-58). Em sua resposta a esses “elogios”, na qual ele cita o provérbio que diz que todo profeta é desprezado em sua casa, ele nem excetua a sua mãe. Assim, outra vez ele se declara livre de parentes e de qualquer laço humano.

Textos no Evangelho de São João

No quarto Evangelho temos dois relatos que tratam da presença de Maria: Ela está nas bodas de Cana e com o apóstolo João debaixo da cruz.

Em Caná ela se mostra preocupada com a continuidade da festa e avisa Jesus quando percebe que o vinho está para acabar, sabendo que ele poderia tomar uma providência. Jesus lhe responde: “Mulher, que queres de mim? Minha hora ainda não chegou”. Já esta primeira palavra, “Mulher” e não eventualmente “Mãe”, é significativa, pois mostra, como sabemos dos sinóticos, que Jesus se desligou em sua missão de laços humanos, e Maria parece compreender isso aqui logo. Mas, por isso não deixa de estar a serviço também nesta situação difícil e já avisa os serventes, preparando assim a ação de Jesus e intervindo nela, que será uma ação profética em relação à festa das núpcias eternas de Deus com a humanidade.

A “hora” de Jesus terá chegado quando ele tiver sido glorificado na cruz. Nesta hora da inauguração das núpcias entre Jesus e a Igreja, Jesus diz à sua mãe: “Mulher, eis teu filho!”, e depois a João: “Eis tua mãe!” Que troca para Maria: De novo, Jesus a chama de “mulher”, e lhe entrega em lugar de si mesmo João com filho.

Maria em outros escritos do Novo Testamento

São Paulo nunca se refere diretamente a Maria, mas na carta aos Gálatas (4,4-5) ele escreve:

Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a Lei, para resgatar os que estavam sob a Lei, a fim de que recebêssemos a adoção filial.

Pelas palavras “nascido de Mulher” Paulo quer salientar que pelo nascimento de mulher Jesus assumiu a condição humana. Ele pensa em Maria, a mãe de Jesus, mas diz nada sobre ela, nem toca na questão de um nascimento virginal.

Nos Atos dos Apóstolos (1,14), Maria é mencionada como pertencendo ao núcleo originário da Igreja que está à espera da promessa de Jesus, da vinda do Espírito Santo. Assim se mostra que desde o início ela está no meio da Igreja.

Sobre a questão se a “Mulher vestida com o sol” do capítulo 12 do livro do apocalipse, que em muitos textos da nossa liturgia mariana aparece, pode ser identificada com Maria, os exegetas não estão de acordo. Para eles esta mulher é uma figura simbólica que representa o povo de Deus do Antigo e do Novo Testamento, do qual o Messias tem sua origem pelo nascimento, que é mencionada no vers. 5 deste capítulo: “Ela deu à luz um filho, um varão, que regerá todas as nações com cetro de ferro”. Todavia, não é impossível que João tenha pensado aqui também em Maria; nem se pode negar que o combate do dragão contra a mulher e sua descendência, descrito neste mesmo capítulo (1-5.13-17), esteja relacionado com a profecia de Gênesis 3,15.

À guisa de Conclusão

Acabamos de ver, a partir dos respectivos textos, o que os livros do Antigo e do Novo Testamento nos apresentam de dados relacionados com Maria, a Mãe de Jesus. Resultou um quadro bastante objetivo, que apresenta Maria no quadro da grande história da salvação. Não poderia ser bom e conveniente completar este quadro objetivo por uma consideração mais subjetiva, para conhecer Maria também em sua vida pessoal e particular e em seu pensar e sentir pessoal, e isso, na medida do possível, a partir daquilo que ela diz e faz ou deixa entrever de si, como moça e mulher judia, e como Mãe de Jesus e da Igreja.

Encontrei no livro de Karl Hermann Schelkle, A Mãe do Salvador (São Paulo, Edições Paulinas, 1972) um trecho de algumas páginas, que começa com as palavras: “Maria define a si mesma”, que me parece satisfazer a nossa curiosidade que acabo de mencionar. Já que é difícil, se não impossível, resumir este texto, sem perder muito do que ele diz, eu vou citar o que me parece importante para nós percebermos como se sentiu Maria, em seu ambiente do Antigo e, depois, do Novo Testamento – que, aliás, nem sempre se podem nitidamente separar.

Karl Hermann Schelkle escreve:

Maria define a si mesma como “serva e Deus” (Lc 1,38). [….] É uma forma veterotestamentária que o israelita piedoso emprega para indicar a si mesmo. Lembremo-nos dos salmos onde o israelita se professa muitas vezes “servo de Deus”. [….]

O homem religioso do Antigo Testamento mantém-se perante Deus numa posição de dependência e serviço [….]. Deus é o Senhor de majestade única e transcendente. Ser aceito para o serviço do Senhor não significa sujeitar-se a uma dependência humilhante, mas graça, eleição, favor e honra. A frase de Maria exprime esta religiosidade veterotestamentária. [….] Maria se perturbou e se atemorizou ao receber a visita e a mensagem do anjo. […] A mensagem não veio acompanhada de nenhum milagre ou sinal. Não teria, portanto, Maria podido pensar que se tratava de uma alucinação? Ela arrisca e pronuncia o “sim” que comprometerá toda a sua vida […]. Deverá arcar sozinha com o peso que lhe é deposto sobre os ombros, em completa solidão, na total incerteza e insegurança de um acontecimento que se realiza pela primeira vez e diante do gritante contraste entre sua atual situação humilde e a magnitude da promessa. Mas é exatamente o risco e a solidão que, sob a ação poderosa da presença do Senhor, fazem jorrar a fé sem igual, que faz dela o protótipo de todos os que creem.

A solidão e a incerteza voltam a manifestar-se sempre que de novo sua fé é posta à prova pela evolução dos acontecimentos, [….] Quando viaja para Belém, na espera do nascimento do seu filho, ela se sente como uma estrangeira. Tendo dado à luz seu filho vê que o menino tem necessidade de seus cuidados, como qualquer outro recém-nascido, somando-se ainda a situação de pobreza extrema em que se encontra. A seguir, obedecendo às determinações da lei e aos costumes do seu povo, Maria submete o menino à circuncisão e o apresenta no templo. Segue–se o drama da fuga para terras desconhecidas. Mais tarde, ouvirá do filho estas palavras, que põem à luz relações desconhecidas até então entre uma mãe e seu filho: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas do meu Pai?” (Lc 2,49). Passavam-se vinte anos, caracterizadas pela Escritura com estas palavras: “era-lhes submisso” (Lc 2,51).

A mãe partilha modestamente com ele a rotina da vida do dia a dia, quando um dia, ele abandona a companhia da mãe e a intimidade da casa materna. Em todos os episódios que a partir deste momento são descritos, acentua-se abertamente a separação. Veja-se o que acontece nas bodas de Caná (Jo 2,1-11): “Que há entre mim e ti, Senhora?” Mas a resposta é clara: Jesus recebe determinações para a sua ação somente do seu pai e não mais da mãe. Maria julga que está ainda em comunhão com o filho. Na realidade está só. Contudo, com esta provação, ela entra em sintonia com ele por meio de uma modalidade nova: a unidade da fé. É por isso que diz aos criados: “Fazei o que ele vos disser”. Já não conta, segundo ela mesma, o que ela diz, mas o que ele dirá, embora não saiba ainda o que ele dirá. Outra afirmação de Jesus torná-la-á consciente de que não mais existe entre ela e o filho uma relação direta, fundada apenas em sua posição de mãe, mas unicamente uma relação indireta, condicionada pela obediência ao Pai: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?” E correndo o olhar sobre a multidão que estava sentada ao redor dele, disse: “Eis aqui minha mãe e meus irmãos” (Mc 3,31-35). Jesus dá outro sentido mesmo ás palavras da mulher da multidão que exalta a relação entre mãe e filho, dizendo: “Antes bem-aventurados aqueles que ouvem a palavra de Deus e a observam” (Lc 11,28). Enfim, Maria ao pé da cruz. [….] ainda deve ouvir: “Senhora, eis o teu filho”.

O Novo Testamento nada fala sobre uma possível aparição pascal de Jesus a Maria. Poderíamos, apesar deste silêncio da Escritura, afirmar que Jesus apareceu a sua mãe?  Ou preferimos aceitar que é mais provável que Maria tenha resistido em sua fé até o fim, sendo a fé tanto mais perfeita quanto menos se lhe é dado ver? [….]

Como mãe, Maria está naturalmente sempre junto de seu filho, como só uma mãe pode fazer; isto, porém, não se realiza segundo um modo humano. [….] Enquanto membro da Igreja, Maria está unida a seu filho.  Da relação natural mãe-filho desabrochou a relação de fé.

Pe. Gregório Lutz (CSSp).

Doutor em Liturgia.
Membro fundador do Centro de Liturgia. São Paulo, SP.