1.Há relação entre Liturgia, Campanha da Fraternidade e Políticas Públicas?

A Liturgia é o culto público que Cristo, o sacerdote da nova e eterna aliança, presta ao Pai (cf. SC 7). Ele louva e suplica ao Pai pelas maravilhas e necessidades do mundo todo. Enquanto memorial de sua encarnação, vida, paixão, morte e ressurreição, em cada celebração litúrgica se faz presente o mistério da entrega total de sua vida, conseqüência da sua fidelidade à causa do Reino de Deus. Este culto litúrgico que Jesus presta ao Pai é a expressão do culto existencial que foi sua vida: uma oferenda agradável a Deus (cf. Heb 7,27). Nós, cristãos e cristãs, pelo Batismo, participamos deste único sacerdócio de Cristo e, por isso, ‘com Cristo, em Cristo e por Cristo’ podemos participar do culto público que Jesus presta ao Pai (cf. LG 10). Assim como Jesus o culto prestado por nós na liturgia deve ser expressão autêntica do culto existencial que é a nossa vida: a verdadeira liturgia que agrada a Deus é adorá-lo em espírito e verdade (cf. Jo 4,23, 1Pd 2,5). Sabemos quão difícil é um culto (litúrgico) estar em perfeita harmonia com o outro (existencial). Afinal, com São Paulo também podemos dizer que diversas vezes fazemos o mal que não queremos, deixando de fazer o bem que almejamos (cf. Rom 7,19). Nesse sentido é que a Liturgia é verdadeiro ‘cume e fonte’ (SC 10): por nem sempre corresponder ao culto existencial (cume) nela buscamos forças para viver de acordo com o projeto do Reino de Deus (fonte). Portanto, liturgia tem a ver com a vida. Na celebração eucarística proclamamos o mistério da fé: anunciamos a morte do Senhor nas nossas próprias mortes, na destruição da natureza, na injustiça social; proclamamos a sua ressurreição nas nossas próprias superações, nas pessoas e organizações que praticam o bem, nos esforços pela paz, na acolhida do outro; até que o Senhor volte e Deus seja ‘tudo em todos’ (cf. 1Cor 15,28). Quando a liturgia não é expressão da fé vivida, encarnada, testemunhada ela se torna apenas um conjunto de ritos destituídos do ser verdadeiro sentido. É a liturgia pagã denunciada pelo profeta Amós (cf. Am 5,21-25).

Em suma, liturgia tem a ver com a CF e com o tema deste ano (2019) porque “o gesto litúrgico, não é autêntico se não implica um compromisso de caridade, um esforço sempre reno­vado por ter os sentimentos de Cristo Jesus, e para uma contínua conversão. A instituição divina da liturgia jamais pode ser consi­derada como um adorno contingente da vida eclesial, já que nenhuma comunidade cristã se edifica se não tem sua raiz na celebração da Eucaristia, pela qual se inicia toda a educação do espírito da comunidade. Esta celebração, para ser sincera e plena, deve conduzir tanto às várias obras de caridade e mútua ajuda como à ação missionária e às várias formas de testemunho cristão”. (Med 9, 2)

 

2.Como esta relação acontece na celebração litúrgica

Por outro lado nossas celebrações são ‘memorial’ e ‘mistério’. A linguagem própria da liturgia é a linguagem do símbolo que ultrapassa a frágil fronteira da razão para nos comunicar a graça: pelos sentidos ao Sentido. Nos atinge não somente o intelecto, mas nossa ‘inteireza’, nossa integralidade, todo o nosso ser. Nos convida a uma mudança de vida pela experiência vivida. Portanto, na celebração litúrgica não cabem doutrinações, não nos utilizamos da linguagem discursiva, mas da linguagem orante. A transformação que ocorre na comunidade celebrante não decorre de imperativos morais, mas da experiência que a assembleia litúrgica, assumindo o seu papel de sujeito, faz do Crucificado-Ressuscitado através dos símbolos, palavras e gestos simbólicos.

Portanto, para celebrar a liturgia no tempo quaresmal levando em conta a CF, seu tema e seu lema não basta “falar da CF nas missas”, mas celebrar o mistério pascal de Cristo alargando nossas consciências para a conversão social querida pela Igreja ao nos apontar determinado tema. “Não é só quando se faz a leitura “do que foi escrito para nossa instrução” (Rom 15,4), mas também quando a Igreja reza, canta ou age, que a fé dos presentes é alimentada e os espíritos se elevam a Deus, para se lhe submeterem de modo racional e receberem com mais abundância a sua graça” (SC 33).

 

3.A CF na celebração litúrgica

Recordação da Vida

A “Recordação da Vida” (termo recolhido no Ofício Divino das Comunidades), pode acontecer logo após a Saudação Inicial. Conforme previsto no Missal Romano (p. 390, n. 3), “o presidente da celebração, o diácono ou um ministro leigo poderá, em breves palavras, introduzir os fiéis na missa do dia”. Neste momento é oportuno lembrar a CF, seu tema e lema. Não como uma prece e muito menos como uma “intenção”, mas como uma ‘recordação’. Muito oportuno é trazer presente à celebração o sentido que tem a CF no tempo quaresmal. Aspectos diversos podem ser ressaltados a cada Domingo para não ficar repetitivo. Neste momento pode também ser valorizado o cartaz da CF. Alguns subsídios mudaram para este lugar da celebração o chamado “comentário inicial”. Há que se tomar muito cuidado para não fazer deste comentário um longo discurso ou uma espécie de “mini-homilia” e, por outro lado, deve se zelar para que não aconteçam falas improvisadas que podem comprometer a harmonia e clima orante da celebração.

Homilia

Sendo um dos momentos próprios para a atualização do mistério de Cristo na vida, a homilia é um lugar privilegiado para ligar a CF com as leituras bíblicas do Domingo. De forma mistagógica a homilia será capaz de unir o mistério da vida ao mistério pascal de Cristo e, nesse sentido, será muito oportuno trazer presente o tema, o lema e as atividades da CF como uma realidade que pede a inserção dos cristãos e cristãs. A homilia não é um momento para uma conscientização acerca de temas. Como parte integrante de celebração litúrgica, também ela deve manter a linguagem simbólica e orante própria da liturgia.

Preces

A Oração da Assembleia é a Palavra ouvida e meditada naquela celebração que se transforma em súplica ao Senhor pelas necessidades da Igreja e de todo o mundo. Não por acaso ela está situada na Liturgia da Palavra; as preces devem nascer da experiência comunitária que se deixou iluminar pela Palavra de Deus e deseja ser transformada por ela no dia a dia pós celebração. Igualmente ao que foi dito anteriormente, também nas preces se faz a opção por uma linguagem orante e simbólica, que poderá ser reforçada por uma resposta cantada da assembleia. Convém lembrar o que diz a IGMR 71 sobre a elaboração das preces: “as intenções propostas sejam sóbrias, compostas por sábia liberdade e breves palavras e expressem a oração de toda a comunidade.”

Compromisso

No final da celebração também será oportuno uma indicação que possa favorecer o comprometimento de toda a comunidade no que tange à CF. O comunicado das ações da CF que estão sendo realizadas na comunidade também pode ser feito neste momento. Muito importante é lembrar que sempre deve ser enfatizado a ligação com a espiritualidade quaresmal. Nela se assenta o sentido da realização da CF: conversão do coração que necessariamente leva à conversão das estruturas de pecado na sociedade.

Celebrações penitenciais

Muito oportunas no tempo litúrgico da quaresma, as celebrações penitenciais são momentos muito próprios para celebrar tendo em vista a CF. Como são celebrações da palavra com caráter penitencial, elas podem ser realizadas com toda a comunidade e também com grupos específicos (jovens, crianças, crismandos, famílias, catequistas, pastorais, movimentos, etc). A partir de textos bíblicos que fundamentam o tema e o lema da CF, as celebrações penitenciais são um ótimo momento para a sensibilização em torno do tema proposto para cada ano. Assim como em toda celebração litúrgica, há que se tomar cuidado para não instrumentalizar a liturgia a serviço de um tema.

 

4.Um hino para a CF

A partir do ano de 2006 foram extintas as antigas missas da CF. Graças a um amadurecimento teológico-litúrgico, a Igreja no Brasil compreendeu a importância das comunidades construírem um repertório litúrgico para o tempo da quaresma que se solidifique. As mudanças constantes no repertório da quaresma através das missas da CF, além de não possibilitarem esta solidificação do repertório, diversas vezes estavam mais a serviço de divulgar o tema e o lema da CF do determinado ano, do que cantar o mistério de Cristo no tempo quaresmal, que é a função própria da música litúrgica neste tempo do ano litúrgico.

Desde então temos para cada ano apenas o hino da CF. O melhor lugar para o Hino da CF é como canto final. Pode ser cantado após a homilia se cumprir a função de realçar a mistagogia da mesma. Não deve ser cantado como canto de abertura, afinal não cumpre as funções ministeriais exigidas deste canto. É importante lembrar que a finalidade do Hino da CF não é litúrgica em si mesma, isto é, não é um hino pensado apenas para as celebrações litúrgicas. É um hino para a Campanha como um todo, para ser cantado em todas as atividades da CF reforçando seu tema, seu lema, os objetivos, sua mensagem principal, etc.

O CD lançado todos os anos pela CNBB, embora traga na capa o cartaz da CF não é exclusivo de cantos para a CF, mas de cantos para a liturgia no tempo quaresmal. Normalmente, ele traz gravado o Hino da CF acrescido de outros cantos da quaresma. As comunidades gradativamente devem se servir deste e de outros bons materiais para construírem seu próprio repertório litúrgico-musical tendo como base a realidade cultural (ritmos, cadências, etc) e a liturgia deste tempo (antífonas, orações, evangelhos, etc).

 

5.CF não acontece apenas nas celebrações litúrgicas

 

A CF é uma ação da Igreja própria para o tempo da quaresma segundo aquilo que foi querido pelo Vaticano II: “a penitência quaresmal deve ser também externa e social, que não só interna e individual. Estimule-se a prática da penitência, adaptada ao nosso tempo, às possibilidades das diversas regiões e à condição de cada um dos fiéis” (SC 110). Entretanto ela não é algo específico para a liturgia, mas ela deve ir além. A CF deve acontecer em todos os âmbitos da comunidade eclesial e social. Não basta “falar da CF” e cantar o Hino nas celebrações. Seu objetivo é mais amplo. Para que ele seja atingido as ações devem acontecer em todos os espaços que uma “Igreja em saída” pode ocupar.

Arnaldo Antonio de Souza Temochko é doutorando em Teologia pela PUCPR. Mestre e graduado em Teologia (PUCPR). Especialista em Liturgia (UNISAL) e Música Ritual (FACCAMP). Membro do Centro de Liturgia D. Clemente Isnard (São Paulo-SP) e da Celebra – Rede de Animação Litúrgica.