Chegando o dia de Pentecostes…
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No domingo da Ascensão, durante as Segundas Vésperas, no nosso coro monástico ressoou o inigualável hino Veni Creator Spiritus, o mesmo hino que irromperá “abrindo” o ofício vespertino de toda essa semana em preparação à celebração da plenitude pascal.

Exatamente! A solenidade de Pentecostes que celebramos a cada ano é a celebração cume do Tempo Pascal, é “o oitavo dia” da grande oitava que é o chamado “Tempo Pascal”, antigamente, infelizmente, chamado “Tempo depois da Páscoa”. Tenho muito vivamente presente um ano em particular quando o cerimoniário do mosteiro ornamentou a coluna do Círio pascal com uma guirlanda verde com frutos maduros, para significar o que é Pentecostes: a colheita dos frutos maduros da Páscoa.

Infelizmente, ao longo dos séculos do II milênio essa solenidade foi se transformando sempre mais numa festa votiva do Espírito Santo. Os paramentos vermelhos, e não brancos, destoam do sentido pascal da solenidade; os formulários apresentados no Missal de Trento, mesmo sendo muito bonitos, eram privados de uma clara referência ao evento de Pentecostes e da sua relação com o mistério pascal, que, sob o plano litúrgico, a festa de Pentecostes entende concluir.

A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II recuperou a dimensão teológica dessa solenidade por meio do formulário e do lecionário.

Para a Coleta[1] e o Prefácio[2] se recuperaram os valiosos textos do Sacramentário Gelasiano.

A Oração sobre as Oferendas[3] foi tirada da antiga liturgia Ambrosiana.

A Oração para depois da Comunhão[4] foi recuperada de um formulário antigo da liturgia Hispano-Mozarábica (VI século).

Em obediência ao que foi pedido pelo Concílio no tocante à restauração litúrgica, o antigo formulário da missa do dia de Pentecoste do Missal Tridentino, da forma como chegou ao missal de 1962, foi conservado inalterado como primeiro formulário para a missa votiva do Espírito Santo.

Um simples dado histórico, e às vezes considerado arqueológico ou filológico, é carregado de espiritualidade. A escolha dos formulários, bebendo de três ritos diferentes, deixa transparecer:

  • a universalidade da Igreja nascida no dia da de Pentecostes em conexão com o sangue e a água jorrados do lado de Cristo suspenso na cruz (Páscoa e Pentecostes como um único mistério);
  • a diversidade de povos e línguas que professam uma única verdade;
  • a unidade da Igreja, que não se confunde com uniformidade, que desde aquele dia “fala” em muitas línguas anunciando uma única mensagem e celebrando um único culto (primeira leitura).

 

A oitava de Pentecostes

 

Sabemos que no antigo rito essa solenidade gozava de uma oitava nascida na Idade Média e de dimensão devocional. Segundo o prof. Scicolone, o papa Paulo VI assustou-se quando viu que a “oitava de Pentecostes” tinha “desaparecido”. Chamada pelo papa, a comissão responsável pela reforma do calendário esclareceu que a “oitava de Pentecostes” não foi abolida, ela simplesmente foi transferida em nome do bom senso. A oitava foi transformada em sétima semana do Tempo Pascal, semana preparatória para a celebração da solenidade, visto que não tinha sentido celebrar o domingo de Pentecoste e cantar nas II Vésperas “Hodie completi sunt dies Pentecostes. Alleluia: Hodie Spiritus Sanctus in igne discipulis apparuit, et tribuit eis charismatum dona: misit eos in universum mundum prædicare, et testificari: Qui crediderit et baptizatus fuerit, salvus erit. Alleluia[5] e passar toda a semana subsequente cantando Veni Creator Spiritus. Era alguma coisa de ilógico e contraditório.

Tal fato revela a riqueza da pedagogia teológica da restauração litúrgica. Não foi fato determinante o devocional, mas o teológico. Na teologia mistérica dos Padres da Igreja, recuperada pelos Padres do Concilio Vaticano II, toda a liturgia é performativa, de modo que o rito realiza aquilo que diz. Não se trata de uma “sagrada cerimônia”, mas de um evento salvífico que penetra no nosso tempo e opera efetivamente nos nossos dias “os prodígios realizados nos primórdios da pregação do Evangelho”.

É urgente que os ministros que presidem à celebração dominical nas diversas comunidades se deixem moldar pela espiritualidade litúrgica, culmen et fons (SC 10) de toda a vida da Igreja, e mergulhem no método da mistagogia para que se dê realmente a frutuosa e autêntica passagem “das sagradas cerimônias à liturgia” [6].

A todos os meus amigos, boa preparação à Solenidade da Plenitude Pascal! O Espírito Santo, fruto maduro do Mistério Pascal celebrado nesse tempo santo, reavive em nós o fogo do seu amor.

 

Dom Jerônimo Pereira Silva, OSB.
Doutor em Sagrada Liturgia.
Membro do Centro de Liturgia Dom Clemente Isnard.


[1] Deus, qui sacraménto festivitátis hodiérnæ univérsam Ecclésiam tuam in omni gente et natióne sanctíficas, in totam mundi latitúdinem Spíritus Sancti dona defúnde, et, quod inter ipsa evangélicæ prædicatiónis exórdia operáta est divína dignátio, nunc quoque per credéntium corda perfúnde.

[2] Tu enim, sacraméntum paschále consúmmans, quibus, per Unigéniti tui consórtium, fílios adoptiónis esse tribuísti, hódie Spíritum Sanctum es largítus; qui, princípio nascéntis Ecclésiæ, et cunctis géntibus sciéntiam índidit deitátis, et linguárum diversitátem in uníus fídei confessióne sociávit. Quaprópter, profúsis paschálibus gáudiis, totus in orbe terrárum mundus exsúltat. Sed et supérnæ virtútes atque angélicæ potestátes hymnum glóriæ tuæ cóncinunt, sine fine dicéntes:

[3] Præsta, quæsumus, Dómine, ut, secúndum promissiónem Fílii tui, Spíritus Sanctus huius nobis sacrifícii copiósius revélet arcánum, et omnem propítius réseret veritátem.

[4] Deus, qui Ecclésiæ tuæ cæléstia dona largíris, custódi grátiam quam dedísti, ut Spíritus Sancti vígeat semper munus infúsum, et ad ætérnæ redemptiónis augméntum spiritális esca profíciat.

[5]Hoje completam-se os dias de Pentecostes, aleluia. Hoje o Espírito Santo aparece no fogo aos discípulos; derrama sobre eles os dons de sua graça e envia-os ao mundo anunciar o Evangelho: Quem crer e for batizado será salvo. Aleluia”. (Tradução da LH monástica).

[6] A frase é o título de um brevíssimo artigo do teólogo italiano prof. Maurilio Guasco, cujo subtítulo é “Os cursos nos seminários faziam surgir uma pergunta: liturgia como espetáculo ou como anúncio? Para alguns não é claro ainda hoje”, do qual reproduzimos aqui um parágrafo: “O curso nos seminários continha já no título uma indicação dos conteúdos. Não se tratava de uma reflexão que indicasse na liturgia uma das fontes e dos cumes da oração, ou que deveria levar a encontrar na liturgia o seu sentido teológico (o teria já dito Cipriano Vagaggini num dos textos mais significativos dos anos do préconcílio, publicado em 1957). Se tratava de aprender uma técnica das celebrações. O professor era geralmente o cerimoniário episcopal, grande esperto e diretor das cerimônias. Era ele que, batendo a férula (isto é o bastão) no chão durante as cerimônias na catedral, dava as ordens: procedamus, sedeant, surgant etc.”. In Vita Pastorale, 2 (2014), 66. Conferir o meu artigo Celebração litúrgica e Igreja como mistério. In Revista de Liturgia, São Paulo, maio/junho de 2014.

 

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