Compor um repertório litúrgico-musical para uma celebração não é uma tarefa tão simples como, às vezes, pode parecer. Mesmo quando se tem à mão bons subsídios, nem sempre estes bastam. É preciso que os agentes da música litúrgica tenham conhecimento sobre a ciência da música litúrgica, a fim de que possam fazer boas escolhas, e assim cumprir o seu papel de ajudar toda a assembleia litúrgica a bem participar do mistério celebrado. Muitos são os critérios. Aqui vamos falar de dois que consideramos dignos de atenção, e que certamente são os principais.

 

1 – ÍNTIMA CONEXÃO COM O RITO

 

  1. a) Texto ritual

Quando o rito é um texto litúrgico do ordinário (ato penitencial, hino de louvor, salmo responsorial, aclamação ao evangelho, oração eucarística, cordeiro de Deus etc.) não há escolha de letra, apenas de melodia, isto é, não se muda nenhum texto do Missal Romano. Neste caso é preciso levar em consideração alguns critérios para a escolha melódica, afinal entre texto e melodia deve haver simbiose e cumplicidade, a fim de que a melodia garanta a expressividade que o texto necessita (cf. SC 112-113).

A melodia tem a função de revestir o texto. A palavra – re-vestir – é de suma importância para compreender qual a melodia mais adequada ao texto. Quando se fala em revestir significa que a música deverá dar uma segunda veste ao texto. Esta compreensão abre o entendimento de que é preciso ser sensível à primeira “veste” do texto para que, consequentemente, a segunda veste que ele receberá (os elementos musicais) combine com a primeira. Por exemplo: a veste musical dada a um ato penitencial evidentemente será diferenciada da veste musical dada a um hino de louvor. O rito pede da música elementos diferenciados a fim de que o texto possa ganhar da música a devida solenidade que ele exige.

É preciso tomar cuidado com certos clichês. Voltando ao nosso exemplo: há quem diga (de modo simplório) que uma música para o ato penitencial precisa ser “triste” e para o hino de louvor precisa ser “alegre, animada”. Neste caso estaremos lidando com conceitos subjetivos e isto é perigoso. O revestimento musical deve levar em consideração alguns aspectos objetivos, tais como:

  • Prosódia: a música deve garantir a acentuação correta das palavras cantadas assim como são pronunciadas. Isto vale tanto para a acentuação gráfica quanto para a pronúncia de letras mudas, por exemplo.
  • Fidelidade à estrutura textual: os textos da litúrgica possuem estruturas diversas. A música deve respeitar e dar ênfase a tais estruturas tendo atenção às frases, aos versos, aos refrãos, às litanias, às respostas, aos tropos, etc.
  • Melismas: a música deve respeitar a primazia do textos evitando qualquer tipo de melismas (excesso de notas musicais para uma mesma sílaba). A palavra deve ter total primazia. Devemos evitar qualquer contorcionismo das palavras para se adequar à música, mas ao contrário, é a música que deve se adequar ao texto.

Há grande proveito espiritual da assembleia litúrgica quando se resguarda o princípio da “reserva simbólica”, isto é, melodias diferentes e adequadas aos diversos tempos litúrgicos. Uma melodia mais solene pode ser reservada ao hino de louvor no tempo pascal, enquanto outra mais simples pode ser reservada para o tempo comum e assim para outras partes fixas da celebração. Embora também aqui possam imperar conceitos subjetivos, um consenso da equipe de celebração (da qual os músicos fazem parte) poderá auxiliar para que não impere na liturgia gostos e tendências pessoais.

 

  1. b) Texto não-ritual

Quando o rito não é um texto ou não há no livro litúrgico uma orientação ou sugestão de texto, há que se ter atenção ao Magistério da Igreja.  Para os cantos de abertura e comunhão o Missal Romano tem antífonas. Segundo o Gradual Romano e o Hinário da CNBB estas são cantadas com salmos correspondentes. Quando esta possibilidade não é viável, as antífonas precisam ser ao menos a inspiração na procura de outros cantos adequados. Além das antífonas, no caso dos cantos de abertura e comunhão, a IGMR (Instrução Geral do Missal Romano) contém os objetivos destes cantos, o que também auxilia na escolha (cf. IGMR nn. 47 e 86)

Para a escolha de cantos apropriados a estes ritos que não têm textos próprios é necessário haver uma compreensão global do rito em seus aspectos teológicos e litúrgicos. Não raro ocorrem interpretações reducionistas dos ritos e isto prejudica em grande escala a escolha dos cantos o que, consequentemente, causa um prejuízo incalculável à espiritualidade do povo cristão, já que a liturgia é a sua fonte (cf. SC 10). Estas compreensões errôneas da ação ritual levam, por exemplo, à escolha dos chamados cantos “catequéticos”. Estes cantos ao invés de cantarem o Mistério celebrado, fazem discursos sobre ele tentando explicá-los. Não é esta a função ministerial da música na liturgia.

Perigo recorrente e veneno para a espiritualidade litúrgica são os cantos de cunho intimista. Colocam o “eu” no centro ocupando o lugar de Cristo e seu mistério pascal. O sujeito da Liturgia é Cristo, Ele presta a Deus um culto público e integral (SC 7). A Igreja participa deste culto porque é associada a seu Esposo pelo Batismo. Desta premissa teológica é que nasce a compreensão de que na música se usa a primeira pessoa do plural como sujeito – o nós. A primeira pessoa – o “eu” – só é aceita que deriva dos salmos e cânticos bíblicos, afinal, ao integrarem o cânon da Sagrada Escritura eles pertencem ao povo de Deus e, portanto, este “eu” tem caráter coletivo.

Quando a letra não está no rito vale lembrar que ela deve estar igualmente apoiada na Sagrada Escritura, base da fé da Igreja (cf. SC 121). Nesse sentido subsídios como o Hinário Litúrgico da CNBB, o Ofício Divino das Comunidades e a Liturgia das Horas são balizas excelentes para auxiliar na escolha de um bom repertório. Importante lembrar que a genuína Tradição da Igreja sempre louvou o seu Senhor a partir da sua própria Palavra.

 

2 – HARMONIA COM O ANO LITÚRGICO

 

Além da sintonia com a ação ritual o canto também deve estar em harmonia com o Mistério de Cristo celebrado ao longo do Ano Litúrgico com seus Ciclos, Tempos e Festas. Basicamente o que dissemos sobre os critérios para a escolha a partir do rito vale também para a escolha pautada pelo Ano Litúrgico. Em cada ciclo, tempo e festa a música será uma poderosa aliada na celebração do único Mistério de Cristo se estiver embebida da Palavra de Deus e das orações litúrgicas.

A música ligada ao Ano Litúrgico, diversas vezes, também é ameaçada pela tentação de ser uma catequese sobre o ciclo, o tempo ou a festa. Não é função da liturgia e nem de sua música explicar aos fiéis aquilo que se celebra, mas de fato é função da liturgia e da música litúrgica (por conseqüência) celebrar o mistério de Cristo em suas diversas faces.

A Palavra de Deus proclamada em cada celebração litúrgica e feita oração na estrutura ritual é a fonte mais excelente para uma escolha adequada do repertório a ser executado. Proclamada na Igreja orante a Sagrada Escritura anuncia o mesmo mistério do Senhor, porém sempre novo e sempre revelado em suas diversas faces. Na ação de graças, no louvor e nos sacramentos este mistério acontece e realiza a Igreja.

Assim como nas festas da tradição popular a música é um dos elementos culturais que melhor possui uma força simbólica a fim de caracterizar cada festa e dar a ela a força expressiva que contagia a todos, também na liturgia a música em cada tempo do ano litúrgico deverá garantir a atmosfera própria de cada um dos ciclos, tempos e festas. Nesse sentido, também neste ponto é preciso tomar cuidado com determinados clichês. O conceito de sobriedade requerido pelos tempos do Advento e da Quaresma, a título de exemplo, não necessariamente tem a ver com uma música mais pobre para estes tempos, o que vale também para o uso dos instrumentos musicais.

Novamente ressaltamos a importância de se ter uma compreensão teológica e litúrgica aprofundada do Ano Litúrgico como caminho de espiritualidade “pelo correr do ano, da Encarnação e Nascimento à Ascensão, ao Pentecostes, à expectativa da feliz esperança e da vinda do Senhor. Com esta recordação dos mistérios da Redenção, a Igreja oferece aos fiéis as riquezas das obras e merecimentos do seu Senhor, a ponto de os tornar como que presentes a todo o tempo, para que os fiéis, em contato com eles, se encham de graça” (SC 102).

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Fazendo uma sadia dosagem entre cantos conhecidos e novos a comunidade vai aos poucos consolidando seu repertório litúrgico-musical e compondo seu próprio hinário. Esta dosagem é de suma importância para a vitalidade da espiritualidade cristã alimentada na liturgia. O excesso de novidade faz com que a comunidade não possa apropriar-se dos cantos e assim não tenha condições de participar. A ausência de cantos novos para integrar o repertório faz com que a comunidade não preencha determinadas lacunas e acabe executando cantos que não cantam o mistério do Senhor. Desta forma se canta na liturgia e não a liturgia.

Quando a comunidade consolida seu próprio repertório a participação ativa da assembléia litúrgica torna-se constante e o exercício dos ministérios dos cantores e instrumentistas alcança seu pleno objetivo que é o de sustentar o canto da comunidade. Além disso um bom repertório imprime identidade à assembléia fazendo com que a mesma se reconheça no ato de culto. Tudo isso faz com que a liturgia seja de fato uma fonte que revitaliza e alimenta a espiritualidade cristã.

Arnaldo Antonio de Souza Temochko é doutorando em Teologia pela PUCPR. Mestre e graduado em Teologia (PUCPR). Especialista em Liturgia (UNISAL) e Música Ritual (FACCAMP). Secretário do Centro de Liturgia D. Clemente Isnard (São Paulo-SP) e da Celebra – Rede de Animação Litúrgica.

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