A Palavra do Senhor está no centro da vida da Igreja. A Igreja acolhe a Palavra de Deus com fé, interpreta-a com amor, celebra-a com devoção (liturgia), proclamando-a com confiança na celebração. Nesse sentido o dinamismo que acontece na assembleia cristã se dá porque esta proclama, escuta, celebra, atualiza e realiza a Palavra do Senhor em suas vidas. Logo, a Palavra reúne a assembleia litúrgica. Na celebração, pela sua Palavra, Cristo se faz realmente presente, diz o nº 7 da Sacrosanctum Concilium.

A Palavra do Senhor está contida na Bíblia, que ilustra a história do povo de Deus, da salvação deste povo e como Deus o conduziu no processo de salvação. Narrada por diversas formas, sobretudo por poemas e histórias populares, a Bíblia nunca deixou de ser fonte de inspiração para a arte sacra. De suas páginas grandes pintores e escultores tiraram estímulos para compor suas obras consideradas como patrimônios da humanidade.

Foi também dela que muitos músicos se inspiraram para criar suas mais belas composições. Johann Sebastian Bach compôs A Paixão segundo São Mateus, uma das mais significativas obras deste compositor. Os compositores são mestres em nos proporcionar através da escuta leiga a harmonia dos sinais em que se conjugam canto, música, palavras e ações, dando um colorido especial que torna sensíveis aos conteúdos narrativos da Sagrada Escritura.

Não é por acaso que a Bíblia faz referências à música por mais de seiscentas vezes. De Gênesis a Apocalipse suas palavras constituem uma fonte inesgotável a fim de que artistas, músicos e compositores tenham a tônica dominante para sua arte dos sons e das palavras.

Foi assim também com o povo da Bíblia. O canto litúrgico nasce para servir a comunidade de Israel como primeira experiência do povo de Deus narrado em forma literária. Aquilo que agora está no culto foi antes vivido pelo povo, em seguida organizado de acordo com as necessidades cultuais e mais tarde transformado em rito. Foi Davi quem realizou esta organização ao estabelecer normas para o culto em Israel, inclusive organizando músicos e repertório litúrgico próprio para as celebrações no templo em sua época.

As primeiras comunidades viram nos escritos do Antigo Testamento, sobretudo os Salmos, a imagem perfeita do Cristo, e, ao cantarem os salmos faziam memória de sua vida, morte e ressurreição. Da antiga tradição de Israel foram conservados os cânticos do Antigo Testamento e, à luz da interpretação do Novo Testamento a partir da pessoa do Cristo, nascem os novos cânticos cantados pela comunidade de fé (Cânticos de Zacarias, Simeão e Maria, além dos cânticos paulinos). Nossas liturgias, ao beberem desta tradição, conservaram a mais fiel referência do povo da Bíblia, ao cantarem suas experiências com o Deus que salva.

Atentos a essa realidade, os Pais da Igreja afirmaram que “o canto ritual, por ser uma atividade agradabilíssima ao ser humano, exerce um extraordinário serviço à atualização da palavra de Deus; torna-se sinal da alegria e do amor cristão; manifesta a expressão eclesial na união da caridade cristã; é o símbolo do sacrifício espiritual do cristão” (O canto cristão na tradição primitiva, Paulus, 2005, p. 225).

O próprio documento conciliar, Sacrosanctum concilium, incentiva e sugere que os cantos da comunidade de fé devem ser extraídos da Sagrada Escritura e das fontes litúrgicas, o que significa dizer que há forte ligação com aquilo que cantamos e a Palavra de Deus, sendo ela norteadora e fonte de inspiração para nossas poesias e de nossos textos cantados destinados à liturgia (cf. SC n. 112).

Quando o canto e a música se apropriam dos textos bíblicos narrativos e poéticos, a linguagem ritual e celebrativa se enaltece de tal forma que a liturgia ganha outro patamar. O indivíduo da assembleia celebrante não é mais o cantor solitário, mas se junta a outros, e, por meio da união das vozes, chega a uma união mais íntima dos corações (cf. Musicam Sacram, n. 5).

A Verbum Domini, ao valorizar o canto destinado à celebração litúrgica, incentiva que se tenha presente um “canto de clara inspiração bíblica capaz de exprimir a beleza da Palavra divina por meio de um harmonioso acordo entre as palavras e a música” (VD, n. 70).

Outro jeito de a Igreja se relacionar com o canto de inspiração bíblica é através do Ofício Divino (Liturgia das Horas). Como já citamos acima, os hinos da Tradição e os cânticos tirados dos Evangelhos foram conservados pela Igreja e adotados em sua forma mais antiga de orar. Sobretudo os salmos, cujo canto nos ajudam a compreendê-los em seu caráter de criação comunitária, sua índole ligada às primeiras comunidades cristãs e associados ao mistério de Jesus e agora colocados na boca da comunidade de fé que canta e ora, permitindo que o louvor distribuído ao longo do dia, através das horas seja agradável a Deus (cf. Instrução Geral da Liturgia das Horas, n. 278-279).

Ao se apropriar da Palavra de Deus a liturgia torna-se então o lugar místico em que a assembleia canta e ora ao Senhor, prestando-lhe o louvor devido, no Espírito que canta nela.

Compositores, letristas, poetas e músicos devem fazer da Palavra de Deus a fonte inesgotável de inspiração para suas obras, e a Bíblia deve ser a escola de oração para que dela suscitem o louvor e a ação de graças ao Deus que é o próprio autor da música.

O autor, Eurivaldo Silva Ferreira, é mestre em Teologia pela PUC-SP e músico. Membro do International Study Group for Liturgical Music (Universa Laus), membro da Equipe de Reflexão de Música Litúrgica da CNBB e membro da Celebra, rede de animação litúrgica.

Obs.: Este artigo foi publicado simultaneamente no Blog do autor.