A Igreja sempre celebra o amor misericordioso do Pai que acolhe e perdoa os pecadores que buscam a conversão e fazem penitência. O sacramento da Reconciliação e Penitência é o lugar ideal para que isso aconteça. A confissão de nossa fraqueza é o gesto simbólico-ritual que expressa nossa vontade de retomar o caminho do seguimento de Jesus e não voltarmos a pecar.

A teologia deste sacramento fundamenta-se no sentido de que a vida de Cristo Jesus que recebemos nos sacramentos do Batismo e da Crisma, e da qual participamos na Eucaristia, é frequentemente desvalorizada por nossa negligência ou desconsideração da dádiva da graça. O Batismo perdoa os pecados, mas não nos tira nossa potencialidade de sermos pecadores.

Frequentemente a presença do mal, do pecado e do sofrimento invade e corrói a vida de indivíduos e comunidades. As celebrações penitenciais não negam esta presença (orações, leituras e cantos), mas querem sobretudo nos recordar que só Deus pode nos ajudar a superar o mal. Celebrar a reconciliação não se trata mais de uma compensação por ofensas cometidas, mas feito sob a égide da liturgia, conversão e reconciliação com Deus, com a consciência e com a comunidade maduras, são muito mais expressão da misericórdia incondicional e do perdão de Deus, que não nos exige nada em troca quando nos perdoa e nos acolhe como filhos e filhas.

Os três parágrafos acima expressam como a Igreja quer conduzir a comunidade de fé quando o assunto são as suas fragilidades e as dos seus fiéis. É um recurso pedagógico-teológico-espiritual evidenciado no tempo quaresmal com o qual nos proporciona que a reconciliação seja experimentada como sacramento. Foi necessário que a Igreja recuperasse a dimensão celebrativa da reconciliação e penitência, pois isso se perdeu durante a história. O Ritual da Penitência prevê uma celebração penitencial para as comunidades que não têm ministros ordenados, desta forma, muitas iniciativas são incrementadas para que as pessoas possam se aproximar da misericórdia de Deus. Embora nos outros tempos também somos chamados a nos reconciliarmos com Deus, o tempo da Quaresma é-nos dado como um itinerário pedagógico cujo caminho é recheado de elementos simbólicos, bíblicos e espirituais.

Aos catecúmenos também é oferecida a oportunidade de trilharem o caminho do bem, pois são encorajados a permanecerem numa luta constante contra o mal. Sobre eles, num determinado momento da etapa catecumenal, é lhes dirigidas orações de escrutínios e de exorcismos, cujos textos os exortam a não optarem pelo mal, tendo como força para isso o próprio Jesus, que venceu o mal. O caminho de conversão apresentado então a estes catecúmenos é simbolizado por um tempo de reconciliação. É deste antigo jeito de a Igreja catequizar que somos sempre convidados a vivermos como cidadãos batizados, vivendo a vida do bem que supõe o mal como barreira a ser vencida por atitudes sempre positivas.

Pois bem, canto e música se inserem neste itinerário, e os cantos penitenciais sobretudo os salmos já são parte de um repertório bem conhecido de nossas comunidades (Pequei, Senhor, misericórdia!, Pecador, agora é tempo…, O povo de Deus no deserto andava…).

O canto litúrgico que acompanha os ritos celebrativos da comunidade que se reúne para invocar e fazer memória da misericórdia, com seus textos e poesias tirados da Palavra de Deus, principalmente dos Salmos e dos profetas, devem conduzir a todos para uma perfeita compreensão dos gestos e símbolos sacramentais próprios destas celebrações penitenciais: a escuta, o aconselhamento, a atitude de arrependimento, o pecador que busca o perdão, as atitudes de misericórdia, o papel da Igreja que acolhe o pecador, a imposição das mãos do ministro e, principalmente, mostrar o Deus misericordioso que, de braços abertos, como o pai da “Parábola do filho que retorna ao lar”, mostra seu amor infinito, disposto sempre a nos perdoar.

Por outro lado, o canto litúrgico dessas celebrações mostra a atitude profética que denuncia o cenário em que o pecado superabundou nas estruturas sociais. É o profetismo que denuncia estas fragilidades e convida o povo a voltar-se a Deus, de coração.

O canto penitencial e de reconciliação deve mostrar um Deus misericordioso a nós apresentado por Jesus. Deve rejeitar a noção de pecado sob o pretexto de que Deus é castigador, que sempre condena. Suas letras poéticas devem conscientizar as pessoas de que a presença do mal instaurado no mundo não é subterfúgio para se buscar o frenético mundo das sensações extraordinárias religiosas em que “tudo Deus vai dar um jeitinho de sanar”. Como sempre chamaram atenção os profetas, é necessário da nossa parte nos abrirmos ao amor misericordioso de Deus e alagarmos o horizonte de nossa fé sempre à prática do bem vivendo como adultos na mesma fé, nos mesmos sentimentos e nas mesmas aspirações. O canto litúrgico aí se torna então exortativo e suscita a que voltemos ao Senhor em atitudes de conversão. A Igreja então canta o louvor dos que, arrependidos de coração, buscam a Deus, sem cessar.

Enfim, o canto e a música das liturgias de penitência e reconciliação durante o tempo da Quaresma se juntam no mesmo esforço espiritual e memorial de: voltarmos a uma atenção geral ao mistério pascal, isto é, viver conforme vive quem é ressuscitado; correspondermos a uma vida pautada na ética e na comunhão com os outros, isto é, colaborando no plano do Reino, em paz com o mundo, com os outros e com o cosmos, em atitude de respeito e cooperação (mudança de vida implica em vida comunitária, isto inclui também a reflexão de construção de políticas públicas, justas e igualitárias para os habitantes das cidades e do campo, além da atitude ecológica e o respeito ao planeta). O nosso canto tem a ver com uma caminhada de caráter todo cristológico e pascal, que permeia não só a Quaresma, mas todos os outros tempos litúrgicos, como já dissemos. Essas atitudes nos colocam em diálogo permanente com o próximo, com o diferente, ao mesmo tempo em que suplicamos a Deus que nos reúna em irmandade ecumênica, em que o perdão dê lugar à reconciliação, a fim de juntos construirmos um mundo sustentável e justo para todos.

Cantemos, pois, neste tempo quaresmal, suplicando ao Espírito que nos revista de sabedoria e fortaleza na luta contra o mal, a fim de celebrarmos com Cristo a vitória da Páscoa.

O autor, Eurivaldo Silva Ferreira, é mestre em Teologia pela PUC-SP e músico. Membro do International Study Group for Liturgical Music (Universa Laus), membro da Equipe de Reflexão de Música Litúrgica da CNBB e membro da Celebra, rede de animação litúrgica.

Obs.: Este artigo foi publicado simultaneamente no Blog do autor.