O tempo quaresmal nos traz a exigente proposta de revisão de vida e da conversão dos nossos maus costumes. Somos convidados a usar do tripé: oração, jejum e caridade, como ferramenta para apoiar nosso desejo de nos encontrarmos com o Pai, com nós mesmos, para sermos capazes de estender a mão aquela pessoa que padece as custas do egoísmo social que impregna a cada um, cada uma com o pecado da indiferença, que segundo J. Pagola é pelo qual seremos um dia julgados.

No meado deste tempo, na verdade a cada Domingo – Dia do Senhor, que é descontado da quadragésima, temos um refrigério ao sermos brindados por leituras iluminadas pelos evangelistas dos respectivos anos litúrgicos. Uma obra memorável restituída pelo Concilio Vaticano II, que nos oferece uma peregrinação pela Palavra de Deus em seus principais textos sagrados.

O quarto domingo do ano A nos trás a cura do cego de nascença e a eleição de Davi como rei de Israel, as leituras desse ano são explicitamente catecumenais, podem ser retomadas nas Eucaristias dos outros anos onde se fizerem presentes catecúmenos que receberão os sacramentos da iniciação cristã na Vigília Pascal. No ano C contamos com a narrativa do Pai misericordioso e o povo de Deus que toma posse da terra prometida.

É muito interessante prestarmos atenção à quantidade de imagens e sinais que as duas propostas nos trazem. Uma leitura menos atenta só aponta uma série de sinais em que se passam as narrativas, mas a proposta dos evangelistas é a de que nos aprofundemos em seu sentido teológico e a cada visita realizada a estes textos, somos levados, pelo Espírito, a perceber nuances antes escondidas.

Numa série de artigos anteriormente publicados pela Revista de Liturgia, o padre Márcio Antônio de Almeida nos brindou com a possibilidade de vermos a salvação nos atingir em cheio, na liturgia, pelos sentidos. A visão, o olfato, o paladar, a audição e o tato são os meios de comunicação com o imanente, por eles o Senhor passa! E a nossa mente capta tudo e nos leva a testemunhar: vimos o Senhor!

Neste sentido podemos observar nos textos bíblicos: em Mateus Jesus que vê o cego, toca o cego; o cego que aceita o toque, obedece à ordem e se lavando enxerga, ouve a inquirição dos autenticadores do milagre e finalmente, faz o encontro pessoal com aquele que lhe deu nova visão. Davi é banhado com o óleo, sua viscosidade penetra sua pele, o bom odor do balsamo se faz sentir. Já em Lucas o filho que deseja experimentar outras propostas, ao final depois de esbanjar dos sentidos, teve que se contentar a comer do pior; o Pai que o vê retornando ao longe e que oferece o abraço a tempos reservado, o anel e a veste que tocam e devolvem a dignidade, a comida saborosa que lhe é restituída… Tudo isso após a privação do melhor para os sentidos, pois estava renegado a ver, cheirar, ouvir, sendo tocado só por imundícies! A salvação restituída também pelos sentidos, em ambas narrativas, nos faz refletir e propõe potencializarmos nossas faculdades, para também desejar entrar e fazer parte dela, assumindo-a em nossa história pessoal de salvação!

Um Pai que usa dos sentidos para nos trazer a conversão, tem mais é rosto de Mãe mesmo, pois só uma mãe ficaria a espera do regresso para casa, do filho danado, do filho danado, quando do regresso, como diria Rubem Alves, pronta para juntar seus cacos.

Os salmos desse domingo, o 22 e o 33, também nos fornecem elementos relacionados aos sentidos e nos convidam a fazer a experiência de Deus utilizando-se deles, sendo que no 33 temos os elementos de provar, de ver, ouvir, contemplar, ser ouvido. Sabemos que o salmo 33 foi utilizado por longos anos, como canto de comunhão no início do cristianismo, pois foi assumido como perfeito louvor e ação de graças pela presença de Deus que realiza maravilhas por seu povo.

Por excelência e sabedoria a Liturgia da Igreja neste quarto domingo da quaresma, chamado da Alegria, nos apresenta em sua eucologia o convite à alegria pela proximidade da festa da Páscoa. Também exulta alentando com a saciedade, a consolação e a reconciliação. Demonstra na cor rósea das vestes do presidente a proposta assumida em sua oração, realçando a espontaneidade do refrigério no meio do caminho, como um oásis onde se faz uma pequena pausa para matar a sede e retomar o árduo caminho á se completar na Páscoa. Em algumas comunidades se tem o costume de colocar uma flor rósea junto à cruz ou da mesa da Palavra também para indicar esse vislumbre pascal. A liturgia do rito oriental também contempla a temática da alegria em sua eucologia para este domingo. A Oração Eucarística VI D pede que ao Pai: “Dai-nos olhos para ver as necessidades e os sofrimentos dos nossos irmãos e irmãs” e em seu prefácio faz menção aos elementos abordados pelo evangelho do Pai misericordioso. Nesse convite podemos perceber que todos os sentidos são convidados a “olhar”, para reunidos conseguirem “ver” abrangentemente as aflições por que passa toda a criação e tomar partido promovendo a ação de recuperar e reestabelecer a vida em abundância onde esta foi negada. Santo Agostinho no Sermão 28 faz essa interconexão dos sentidos para que haja uma interpretação da realidade apresentada, nos dirigindo e apresentando o Cristo como sendo o unificador de nossa existência junto a Ele: “para o nosso coração, o Senhor é luz, é voz, é odor e é alimento. E, pelo facto de Ele não ser nada disto, é que Ele é tudo isto” .

Através da Campanha da Fraternidade, que nos leva a tê-la como parte integrante do tripé quaresmal no que tange a caridade, nossas comunidades são chamadas a refletir este ano sobre a temática das políticas públicas e nos levam a pensar como essas políticas andam cuidando dos portadores de necessidades especiais, relacionados aos sentidos da visão e audição (cegos e surdos), dos que carecem de ter a garantia alimentar mínima respeitada (paladar), da extensão do saneamento básico para além das áreas nobres das cidades (olfato) e o cuidado com os idosos, as crianças e os indigentes, abandonados por causa de lares corrompidos por uma sociedade do descarte (tato).

Resta então, o alegre desafio, de pelejarmos como testemunhas do Cristo e transformar nossas vidas, vendo com os sentidos e sendo Mães misericordiosas com toda criação “que geme e sofre em dores de parto” até a manifestação final da bondade de Deus, que vai superar toda pequena e vã expectativa que temos Dele e dissolver todo mal num aconchegante abraço!

José Fernandes Correia é membro da pastoral de Liturgia e Canto da Arquidiocese de Maringá e da equipe de reflexão para Liturgia e Canto do Regional Sul II da CNBB

Para aprofundar:
PAGOLA, José Antonio. Jesus aproximação histórica. 5.ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
Revista de Liturgia. São Paulo:  n. 205-211; 252.
Revista Vida Pastoral. Liturgia e corporeidade. Paulus: 2019 (periódico a ser lançado em mai/jun).
ALVES, Rubem. Educação dos sentidos e mais. 9.ed. Campinas: Versus, 2012.
http://domtotal.com/noticia/1290005/2018/09/abrir-os-sentidos-para-o-encontro/ acessado em 08/03/2019.
Texto completo de Agostinho, Sermão 28: https://www.snpcultura.org/quaresma_2013.html?fbclid=IwAR3BTIIBgjQqnAXkonUmqbCEzqFhxdOdyhjzRaDxGNB54owKfoahs5v8T0Y acessado em 08/03/2019.